Salve, pipous!!! Depois de tanto tempo, saudações novamente do Louco!!
Várias vezes (menos do que eu gostaria, verdade seja dita), meus convites pra conhecidos, amigos e amigos conhecidos (espera aí, acho que isso ficou esquisito...) pra ler esta história acabaram batendo numa barreira inexorável. 'Ah, eu gostaria, mas a história tá posta de trás pra frente'.
Eu sempre digo, não sou bom com essa coisa de computador (gosto de usar, mas é uma máquina de escrever metida a besta pra mim ^^). Cheguei a procurar nas configurações (que consegui achar) do blog, e não achei jeito de reverter. E assim, ficou o impasse...
Até agora. Se não achei um jeito moderno e prático, fiz o que sei fazer, reverti pra forma antiga... e postei tudo de novo, uai. Em ordem invertida.
Sim, valeu a pena a trabalheira. Aproveitei pra rever alguns dos meus momentos favoritos e lembrar de tomar vergonha nessa minha cara preguiçosa; Christabel é uma história que eu adoro reler (por menos que eu consiga ser imparcial, como autor), e fazia tempo que tava parada.
Trago a todos que gostam de ler, e agora numa ordem aproveitável, minha rainha das terras sombrias. Conforme meu projeto a la 'Crise nas Infinitas Terras', pode ser interessante pra quem vir Christie e seu marido Zero (é, é o nome dele. Não, que apelido? Eu disse 'nome'!) ter onde procurar o lugar onde os dois se conheceram, e como eram as coisas no começo da relação deles. Espero que a comparação seja divertida pra leitores tanto quanto foi pra o autor que vos fala ^_^
Boa diversão, minna-san!
Ulha, eu não sabia q isso aqui aparecia assim, ou teria escrito em português, mesmo... ^^ Uma história q mistura magia, tecnologia, um pouco acidental de psicologia, tbm... e sei lá mais o q
Tuesday, May 19, 2015
Capítulo 01
I - Christabel
Nas Terras Sombrias, no Extremo Oeste do Continente
Regalia, outra contenda se iniciara. Sendo as Terras Sombrias a porção
civilizada que fazia fronteira com o Fim do Mundo, ataques das bestas selvagens
vindas de lá eram lugar comum, ainda que fosse uma ocorrência lamentável.
Muitas vidas postas em risco, e no entanto, os Ocidentais não conheciam outra
vida. Nem tinham qualquer opção ou escolha por si mesmos.
A Fortaleza de Melk, nomeada em
homenagem a um grande herói do passado, era o lar da família real; atualmente,
reduzida à jovem rainha Christabel, odiada e respeitada por todos. Flechas dos
defensores de Melk enxameavam pelas muralhas e abaixo, sendo devolvidas por
projeções semelhantes que alguns dos monstros, uma espécie chamada pelo povo de
Melk de ‘Artilheiros’, ou ‘Cascudos’, expeliam de seus corpos. De ambos os
lados criaturas e guerreiros caíam, a batalha equilibrada. Era um grupo menor
de monstros que atacava daquela feita, e no entanto, haviam trazido alguns dos
mais resistentes de suas espécies para causar uma boa batalha. Certamente
estavam avaliando as defesas da fortaleza novamente, mas isso não interessava
aos defensores. Para o povo de Melk, não havia o que se discutir; eles lutavam,
venciam ou morriam. O resto era resto.
Marco, capitão da guarda e
principal defensor das muralhas, comandava os esforços no alto enquanto
auxiliava seus colegas e comandados contra os Rastejantes, criaturas da altura
de um homem, corpo de inseto e quatro garras para atacar ao mesmo tempo, além de
presas com tenazes capazes de partir ossos com um único golpe. Com uma pesada
espada de ferro na mão direita e um machado curto na esquerda, o comandante
mostrava aos seus soldados o que fazer, ao invés de perder tempo dando ordens
em meio á cacofonia do combate.
Um Rastejante escalou a muralha
logo adiante, e Marco correu até a fera. O monstro já livrara seu primeiro par
de braços quando o defensor chegou a ele, e girou sibilando enquanto suas
tenazes estalavam na direção de Marco.
Seu machado desceu contra a cabeça
da coisa, e Marco viu as duas garras da fera agarrarem seu pulso, enquanto as
tenazes se aproximavam para decepa-lo. Aproveitando o movimento, o capitão
enterrou a espada de sua mão direita na boca aberta da criatura, que engasgou
com o aço e estremeceu, ainda agarrada em sua outra mão.
E Marco retirou sua espada com um
tranco, girando-a num movimento de pêndulo para decepar as garras do monstro
como este quisera fazer a ele, chutando-o depois para baixo e sobre seus
colegas que ainda escalavam.
Olhando adiante, Marco viu um de
seus comandados com uma lança, tentando sem sucesso repelir outro Rastejante. A
tentativa do soldado de perfurar a criatura foi detida quando os dois primeiros
braços do monstro agarraram a arma, e os outros dois agarraram o homem, que
gritou enquanto as tenazes se abriram para mastigar sua cabeça.
Marco arremessou seu machado com
precisão e força, cravando-o até a metade na cabeça do monstro insetóide, que
tombou com um sibilo surdo, ainda agarrado ao soldado. E ele acenou agradecido
para o capitão, que já se engajara em combate com um terceiro Rastejante.
Os arqueiros da fortaleza então
deram um brado de alerta e terror, começando a disparar para o alto. O ataque
agora vinha de duas frentes, enquanto um grupo de Místicos se aproximava
voando. Semelhantes a enormes cabeças com cauda, braços instalados em suas
bochechas, os Místicos eram demônios flutuantes que atacavam à distância, as
mãos bem abertas com dedos longos cintilando enquanto jatos de flamas começavam
a vir deles, explodindo como lava onde quer que tocassem. Talvez, de fato, a
razão para aquela investida não fosse uma verdadeira invasão, mas a julgar como
seguiam os eventos, era uma questão de tempo até que tal coisa se tornasse
possível. Os guerreiros humanos estavam fazendo o melhor de si como sempre, mas
já começava a não parecer o bastante.
Passos soaram pelo corredor que
conduzia do Palácio Central às muralhas, então. Passos solitários, como sempre.
O longo vestido ondulando no ritmo de seu caminhar, protetores de metal em seus
pulsos e peito, cabelos lisos escuros emoldurando um rosto de pele clara, olhos
cinzentos e lábios vermelhos, com um olhar ainda mais duro do que o metal que
usava como proteção. A Rainha acabara de se envolver na batalha.
Os Místicos guincharam nos ares,
enquanto pareciam reconhecer seu alvo principal emergindo da torre, e da
formação que se aproximava quatro jatos flamejantes convergiram ao mesmo tempo
na direção da saída, mediante gritos de alerta e debandada geral dos soldados.
Christabel ergueu seus olhos para
os demônios que a atacavam, sinalizando como se ordenasse que parassem onde
estavam. E os quatro jatos de fogo místico explodiram no nada, como se uma
cúpula invisível protegesse a rainha. Embora resíduos inevitáveis do ataque
tivessem espirrado como fogo líquido por toda a volta, espalhando gotas de
fogo, Christabel estava absolutamente ilesa. E seus olhos cinzentos pareciam
gelo.
Seu braço esquerdo abriu-se,
enquanto uma névoa luminosa abrangeu seu movimento, espalhando-se por entre as
muralhas como se flocos de neve luminosa fossem soprados por um vento
invisível. E onde quer que houvessem Rastejantes tocados pela névoa, estes
estremeciam, guinchavam e caíam de costas, morrendo aos poucos. Dentro dos
muros a luta foi lentamente diminuindo, enquanto os defensores corriam para
dentro da proteção de sua Rainha e os monstros morriam, um a um.
E os Místicos tornaram a atacar,
abrindo sua formação num grupo amplo, e depois em dois. Cascudos lá embaixo
começaram a disparar suas salvas na direção da Rainha, que recolheu seus dois
braços para si mesma.
Os dardos detiveram-se diante
dela. Alguns, a pouco mais de cinqüenta centímetros da regente, mas nenhum
próximo o bastante para causar-lhe qualquer mal. Christabel então abriu seus
braços, um olhar severo voltado para os demônios voadores enquanto os dardos
lançados pelos Cascudos abriam-se numa chuva reversa, fulminando vários dos
Místicos que se aproximavam, reduzindo a nuvem a poucos remanescentes que
preferiram fugir da Rainha.
E a regente então voltou seu olhar
para os seres lá embaixo. Rastejantes e Cascudos, em sua grande maioria,
sibilando e começando a seguir o exemplo de seu apoio aéreo. Não tornariam a
atacar aquela noite. Estavam satisfeitos com o teste.
Mas Christabel não estava. Um
olhar de viés para o lado mostrou-lhe que alguns dos seus soldados haviam sido
feridos, alguns poucos mortos. E Místicos tombados e uns poucos Rastejantes não
bastavam. Ainda que morrer fosse algo comum nas Terras Sombrias, ela teria sua
compensação. Seu braço direito esticado, movido para a direita, a mão de palma
voltada para baixo, a Rainha abriu uma enorme Fissura de um lado a outro diante
da muralha, com largura e comprimento suficiente para engolir a todos os
monstros lá embaixo, fazendo-os desaparecer com um estrondo ensurdecedor.
Terminara. Christabel voltou seus
olhos para dentro das muralhas. Os soldados, arqueiros, todos os sobreviventes,
olhavam para ela com um misto de admiração e terror, e ela não surpreendeu-se.
Havia algo vazio dentro de si que sempre se movia nestes momentos, quando
nenhum reconhecimento ou saudação lhe era dado. Nem sequer um sorriso. Sempre o
mesmo.
Os olhos da Rainha voltaram-se
para a Fissura, e ela explodiu em chamas, sendo completa com lava ardente.
Aquilo levaria a noite inteira para resfriar-se, e dificultaria muito o acesso
de qualquer ser pela terra por mais aquele dia. De mãos abertas unidas por um
momento, Christabel ergueu os braços e então os abriu amplamente acima de sua
cabeça, e um pólen rosa-purpúreo expandiu-se a partir de suas mãos, perdurando
mais do que a névoa luminosa que usara antes, e erguendo-se aos céus na forma
de uma cúpula sobre as muralhas. Aquilo bastaria como proteção pelo resto da
noite.
_ Cuidem dos feridos.
Ela não precisava dizer mais coisa
alguma. Lá embaixo, tendo saltado das muralhas para fazer luta com seu rival no
pátio diante dos portões, o Capitão Marco afastou um filete de sangue que
ameaçava cobrir seus olhos e ficou observando enquanto a Rainha tornava a
entrar em sua torre. Ela era indiscutivelmente poderosa, e uma grande vantagem
nas lutas deles ali, contra as feras. Mas...
_ Maldita feiticeira...
Nenhum dos Ocidentais tinha
qualquer amor pela jovem Rainha. Pouco importava que ela fosse sua governante,
ou uma arma tática útil; ela se impusera a eles como regente num momento de
crise, e nunca teria sua confiança. Não importando o que fizesse.
Os murmúrios haviam começado, ela
bem sabia. Quase podia ouvi-los, ou talvez os estivesse imaginando, ou talvez
ambas as coisas; Christabel sabia muito bem. Por si mesma, não se importava;
não queria acreditar que se importava. Estava em seu lugar de direito, pouco
importando se agradava ou não. A ironia da coisa toda era o motivo principal
pelo rancor e desprezo do povo, e sua falecida mãe com certeza riria, seu belo
sorriso de criança, se a filha lhe pudesse contar qual era a sua relação com o
povo, e o porquê.
“Mamãe... Papai...!”
Algo dentro de seu peito, como uma
velha ferida momentaneamente perturbada, a incomodou por um instante como um
fantasma de dor, e Christabel olhou fixamente para frente enquanto avançava,
toda a sua concentração voltada para si. O passado estava morto. Ela era o que
era. Não porque agradasse ou desagradasse alguém; era o que ela fora ensinada a
ser. E nada mais importava.
Capítulo 02
II - Melissa
Eles eram loucos!
Era a única descrição dada a
qualquer um da Cidade Sucata, quando um forasteiro chegava. Fora o que Melissa
também dissera ao chegar ali, pouco menos de quatro meses antes. Estudiosos da
cultura antiga, arqueólogos e engenheiros viviam ali escavando um ‘grande veio’
de tecnologia, e reparando o que podiam para uso da sociedade moderna. Ela fora
até ali mais por curiosidade, e pela insistência de sua mãe que estudasse algo
mais além de magia negra. Segundo D. Milena, ‘conhecimentos em mais de um campo
ajudam muito quando viajando pelo mundo, pois quando um deles falhar, pode-se
improvisar com o outro’. E, surpresa das surpresas para ela, Zero concordara
imediatamente quando ela dissera tal coisa.
Agora ela o auxiliava nas
escavações do pai. Os dois se davam muito bem, e ele pedia a ela que o ajudasse
na extração das antiguidades nos setores mais profundos das ruínas sob a Cidade
Sucata. O pai dele, Seu Dirceu, como sempre torcera o nariz. Para um estudioso,
o homem era muito cabeça-dura e desconfiado, principalmente no que tocava à
magia; eles ali lidavam com tecnologia e máquinas! Não tinham o que fazer com
usuárias de magia!
Mas o filho Zero intervira por
ela, e Seu Dirceu acabou aceitando a presença da jovem maga. E ela novamente
sorriu na penumbra enquanto seguia o amigo, que ia adiante com uma lanterna.
Razoavelmente alto, de cabelos castanhos escuros e quase sempre com um sorriso
no rosto, Zero via graça em tudo (“Com um nome desses, o que você queria que eu
fizesse?”, ele costumava perguntar quando comentavam seu modo risonho de
encarar as coisas), e sempre ouvia aos dois lados de uma discussão. E era muito
corajoso, também; embora outros pesquisadores e escavadores tivessem filhos que
gostavam de ajudar nas extrações, a maioria deles não gostava de descer às
catacumbas. Zero era uma das raras exceções.
Mais estranho era que ela não se
importava de descer, tampouco, desde que ele a acompanhasse. Isso também gerou
alguma inveja dos demais, que se ressentiam um pouco do fato de Zero e Seu
Dirceu quase sempre encontrarem o que havia de melhor nas ruínas, e pior ainda
era que a linda jovem loira o seguisse por toda a parte. E, claro, ninguém
conseguia acreditar quando ele dizia que eram ‘apenas amigos’.
_ É sério, gente! A Li é só minha
amiga, quase uma irmã pra mim.
_ Ah, tá bom. Até parece –
respondiam na maioria das vezes – Quer me convencer que você anda por aí com
aquela gracinha e não faz nada com ela?
_ Claro que não! Eu sou contra o
incesto!
Então a discussão morria, com
resmungos, risadas e comentários murmurados. Melissa se admirava de como ele
quase sempre respondia a mesma coisa; tinha uma paciência e tanto, Zero.
_ E então, o quê vamos procurar
hoje, Zero? Ou nem você sabe?
_ Ah, as duas coisas, Li – ele
voltou um pouco o rosto, o sorriso outra vez em sua voz – Eu vim procurar algo
que o pai pediu, mas se encontrar algo mais... não vou chorar, né?
_ E acha que vai...
_ Espera só um pouco...! Aquilo...
Ele escalou uma parede irregular
inclinada quase como se fosse uma aranha, para preocupação de Melissa. Era fato
conhecido que as paredes por vezes se enfraqueciam com as escavações, e não era
nada seguro ou inteligente subir nelas. O próprio Zero já se ferira duas vezes
fazendo tal coisa, e sempre aconselhava os outros a não agirem daquela forma.
Claro, ela pensou com ar entediado, uma coisa era dizer como agir; outra, bem
diferente, era agir adequadamente com os próprios conselhos.
_ Zero, você tá se arriscando de
novo. – ela comentou com voz vazia.
_ Nah, espera aí, Mel, que acho
que isso era...!
Ele estava tão absorto que a
chamara pelo seu apelido ‘sério’; segundo ele, só a chamaria assim quando algo
importante estivesse acontecendo, visto que era como todos os outros a
chamavam, e ele preferia evitar agir como os outros. Eternamente do contra, era
como Zero se classificava. Mas Melissa arregalou os olhos quando viu que a
pilha de entulho que devia ser a base da parede começou a estremecer, enquanto
o amigo remexia em algo que vira lá em cima.
_ Zero, desce daí! Essa coisa toda
vai...!
“Desabar” perdeu-se em meio ao
estrondo da parede descendo, com Zero em cima dela. Sem pensar no que estava
fazendo, Melissa recuou dois passos depressa, quase pulando, enquanto
gesticulava na direção de Zero, as duas mãos voltadas na direção do amigo e
mantendo-o onde estivera no momento da queda, impedindo que se machucasse nos
escombros. Foi um estrondo barulhento e levantou poeira, mas não foi mais do
que o que seria de se esperar dentro da caverna fechada. Ela ainda tossia um
pouco quando ouviu a voz risonha de Zero.
_ Grande Li! Valeu! Agora... será
que dava pra me baixar? Eu tô ficando um pouco enjoado, flutuando aqui,
sabe...?
_ Zero, seu besta, você podia
ter...!
O raciocínio ficou sem completar,
visto que, em meio à sua irritação, Melissa suspendeu bruscamente a aura que
levitava seu amigo, deixando Zero cair sobre os restos da parede, e rolar até
que parasse no chão, mais sujo ainda de poeira e com um ar meio tolo no rosto.
_ Era isso que podia ter me
acontecido? Aaaaah... Agora entendi.
_ Zero, minha nossa, desculpa,
você tá bem?
_ ‘Bem sujo’, acho – e piscou para
ela – mas nada quebrado, não. Aiai... Tava ignorando meu próprio conselho de
novo, né? Foi mal.
_ Desculpa, acho que eu preciso
praticar mais; não devia ter me desconcentrado.
_ Ah, deixa pra lá, Li. – e ficou
de pé, batendo em si mesmo para tirar o excesso de poeira – Pelo menos consegui
segurar isso aqui, antes de você me levitar. Dá só uma olhada!
Era uma pedra vermelha cristalina,
sem uma forma definida. Melissa olhou curiosa, mas sem entender muito bem.
_ Você causou esse desabamento e
quase se quebrou inteiro pra pegar um rubi?
_ Isso não é ‘rubi’ nenhum, Li!
Lembra o que eu te falei que o Dr. Oscar usou na minha Unicórnio pra ela andar?
Era uma dessas daqui!
_ Uma jóia Dragão de Fogo? –
Melissa olhou com maior interesse – Tá falando sério?
_ Bom, é cedo pra dizer sem o meu
pai dar uma olhada, mas acho que é sim. Bem que o meu velho falou, esse lugar
tem algo que atraía os Vermes da Pedra antigamente. Alguma mudança no ambiente
fez eles migrarem pra longe, mas os restos dos que morreram antes disso
continuam por aqui. Foi isso que eu vim buscar pra ele, hoje.
_ Ele vai tentar de novo construir
um motor a vapor? – Melissa pareceu preocupada – Aquelas coisas são perigosas,
Zero; pressão, caldeiras... Teve aquela explosão...
_ Êêêêêê, vamos parar? – bronqueou
o outro – Não vai acontecer nada com o Seu Dirceu, não; meu pai é um gênio!
E... não, dessa vez tem algo a ver com um negócio que vamos mandar pra as Terras
Sombrias; ordem da rainha de lá, eu acho.
Melissa sentiu-se visivelmente
mais aliviada. Pouco importando o que Zero dissesse, explosões e acidentes de
trabalho sempre a preocupavam. No que lhe dizia respeito, ela sempre estaria
por perto para ajudar o amigo, mas...
_ Agora vem comigo; já cumpri com
minha obrigação pro véio – ele sorriu – Tá na hora da gente explorar um pouco.
Ela deu um sorriso um pouco fraco.
Pessoalmente, por vezes se perturbava em observar as ruínas e pensar que
pessoas haviam vivido ali havia tanto tempo, e tudo o que restava deles eram os
prédios que haviam construído. E pelo jeito, Zero conseguiu adivinhar os
pensamentos dela.
_ Olha, Li, eu sei o que você tá
pensando. No começo, eu tinha esse tipo de pensamento, também. Ficava triste
quando tentava imaginar as pessoas andando entre aqueles prédios, sem saber o
que ia acontecer com eles.
_ ... Mesmo?
_ É – ele acenou que sim com a
cabeça – Mas sabe o que mais? Meu pai veio comigo uma vez e comentou que o bom
no fim das contas era que eles tinham existido. Não tinha tristeza nenhuma no
fato de eles terem acabado. É a sina de tudo o que existe, no fim das coisas;
se acabar.
Melissa parecia ainda mais
entristecida pensando nisso, mas Zero, o sempre alegre e intempestivo Zero,
gentilmente ergueu o rosto dela pelo queixo, e Melissa ficou admirada com a voz
dele e seu olhar, tão incomuns do que costumavam ser.
_ Não tem problema nisso pra mim,
irmãzinha. Ao invés, eu prefiro explorar o que eles deixaram. Eles fizeram tudo
o que podiam durante o tempo deles, e ia ser um tremendo desrespeito se a gente
deixasse as coisas incríveis, maneiras, de conhecimento antigo se acabar. Não;
a gente tem que fazer o que puder pra recuperar tudo o que for possível. Ao
menos... enquanto ainda estamos aqui. – e sorriu – Você não concorda?
Melissa então sorriu também, e
acenou que sim com a cabeça, segurando a mão dele. Este era seu querido amigo
Zero, tão passível de tristeza quanto qualquer pessoa, mas se recusando a
deixar que ela levasse a melhor sobre ele. Ou sobre qualquer um próximo a ele.
_ Então... me mostra alguma coisa
que a gente não deve deixar desaparecer... ‘Irmãozão’.
Sorrindo, Zero puxou Melissa pela
mão e os dois entraram ainda mais nas catacumbas, embora ele agora tivesse na
mão esquerda uma pistola. Parte da ciência antiga recuperável, armas de fogo
eram resumidas a espingardas de dois disparos, no máximo, ou pistolas de até
quatro tiros. Era uma dessas que Zero portava naquele momento, e Melissa achou
melhor se preparar, também. As ruínas eram fascinantes, mas embora os Vermes da
Pedra tivessem sido afastados por alguma mudança do ambiente, eles não eram os
únicos monstros que vagavam por ali.
(Os sons de vozes eram bem claros, assim como os
cheiros. Carne! Mais carne fresca! A rainha precisava de mais alimento; estava
na época dos ovos!)
Penetrando ainda mais nas
catacumbas, Zero e Melissa chegaram ao que parecia ter sido uma grande avenida.
Era estranho que aquilo estivesse sob o solo para a moça, mas Zero contou a ela
que, de acordo com os estudos, o evento que vitimara aquelas pessoas também
havia levado sua cidade para o interior da terra. O mais curioso, pelo menos
para o rapaz, era que as coisas haviam sido tanto quanto bem conservadas depois
de soterradas.
_ Já tinha vindo aqui antes duas
vezes, antes de você vir pra Cidade Sucata, Li. Em um ou outro lugar a gente
ainda achava alguns esqueletos, mas a maioria tava deserta.
_ Argh, esqueletos...! – Melissa
franziu o rosto – Vocês deviam ficar felizes quando não encontravam nada,
então!
_ Ao contrário, Li, isso é muito
curioso – Zero olhou para ela, algo implícito em sua expressão – Mesmo levando
em conta os bichos que eventualmente apareciam e deviam se alimentar dos
cadáveres, você não acha estranho que um bairro, como esse aqui parecia ser,
tivesse tão pouca gente? Pra onde foram os corpos dessas pessoas? Saíram
andando e foram procurar uma caverna mais profunda?
_ Nem brinque com isso! – Melissa
estremeceu – Magos necromantes têm o péssimo hábito de reanimar cadáveres,
criar zumbis e esqueletos pra proteger suas habitações, e isso sempre me
assustou desde que eu era criança! Lembre-se que, pra quem lida com magia, isso
de corpos mortos saírem andando não é impossível!
_ Nossa, tem razão! Tudo bem, me
desculpa; eu também não fiquei muito animado com essa idéia, não – Zero olhou
ao redor, um pouco mais apreensivo – Mas... bom, talvez não seja isso. Não sei,
pode ter sido só decomposição natural, mesmo.
_ Er, Zero...?
_ Aiai, tá bom, tudo bem. Vamos só
até ali, numa casa que eu passei perto uma vez, e dar uma olhada rápida. Depois
a gente sai. Tudo bem?
Melissa acenou que sim com a
cabeça, e eles seguiram em frente, o caminho iluminado pela lanterna de Zero.
Aquela conversa toda sobre mortos, mortos-vivos e dentro de uma caverna
profunda como aquela sem muito espaço para fugir em caso de necessidade havia
perturbado até os nervos do rapaz, e ele sabia que sua amiga agora estava mais
apreensiva ainda para partir. Mas havia algo que ele queria verificar primeiro.
(Pouca carne dessa vez, mas serviria. Ao menos para
a rainha, serviria. Estava chegando a época de ousarem um pouco mais e se
afastarem dos seus túneis, a continuar como ia, mas... primeiro, a refeição da
rainha)
Os dois entraram. A porta da
frente há muito já desaparecera, consumida pelo desgaste do tempo e já
enfraquecida pelo evento que colocara aquele pedaço de cidade sob a terra. Lá
dentro contudo, apesar das paredes rachadas e do piso avariado, apesar do
desgaste e do cheiro mofado dentro da casa, muito do que um dia fora ainda existia.
_ Zero, todas essas coisas ainda
estão...!
_ Legal, né? – ele sussurrou para
ela, outra vez sorrindo – eu também achei muito bacana, ver que tudo continua
do mesmo jeito que deve ter sido quando ainda estava lá em cima. Vem, acho que
era aqui...
Os dois então seguiram por um
corredor um tanto irregular, que levava mais para dentro da casa. Entre duas
portas meio ruídas, um pouco bloqueadas por escombros, eles entraram no que
devia ter sido um quarto de adolescente; talvez uma garota.
_ Era aqui mesmo. Vem, Li, que era
isso que eu queria te mostrar.
Zero caminhou até uma penteadeira,
e Melissa não teve como conter a curiosidade então. Ele já estivera ali antes,
então; o que havia visto de interessante ali que não buscara antes? E ouviu um
som curioso de música enquanto Zero se voltou para ela.
_ Pra você, Melissa. Feliz
aniversário.
Os olhos da jovem maga brilharam
de admiração. À primeira vista, o que Zero tinha na mão era apenas uma caixinha
marrom retangular sem qualquer atrativo maior, com dois espelhos dentro; um na
tampa, o outro servindo como um fundo falso para a caixa. O interessante nela
no entanto era a pequena manivela que seu amigo girara, agora girando sozinha
enquanto uma música suave de sinos tocava.
_ Desculpa, Li, eu queria ter
descoberto o nome dessa música antes, mas como o Dr. Oscar já adiantou que vai
ser muito difícil encontrar referência lá na Cidade Avançada...
_ Zero... que lindo! Como você
achou isso...? Como foi...
_ Ei, eu sou um Escavador também,
não sou? – ele sorriu e piscou – Meu pai disse que chamavam isso de ‘caixas de
música’; nomezinho previsível, se quer saber. E, olha só! Tem mais...!
Ele retirou da gaveta duas
pequenas figuras de vidro com bases redondas, e Melissa olhou encantada quando
ele as colocou sobre o espelho de fundo falso, e elas começaram a rodopiar ao
som da música. As duas figuras pareciam-se com bailarinas em postura de dança,
e Melissa mal percebeu quando Zero passara a caixa para suas mãos.
_ Tá um pouquinho suja, mas é de
coração, Li. Espero que você tenha gostado.
_ Gostado? Zero, eu adorei! – ela
o abraçou empolgada e beijou seu rosto – É lindo, lindo mesmo! Mas... não tem
problema você me dar? Se tudo o que é descoberto aqui sempre tem que ser
estudado, desmontado...
_ É por isso mesmo que eu resolvi
dar ela pra você, Li. Até escondi aqui, porque sabia que não iam descer pra as
catacumbas tão cedo com um grupo de pesquisa. Na minha opinião já funciona
muito bem e não tem nada quebrado; ia ser um desperdício de tempo e também uma
judiação fazerem essa caixinha passar pelos procedimentos de sempre. Sei que
você vai cuidar melhor dela.
_ Mas... Mas... – ela estava
feliz, muito feliz, mas ao mesmo tempo seu senso de responsabilidade lhe dizia
que aquilo era errado – Zero, isso é muito caro! Depois de limpo e reparado,
venderiam por fortunas na Cidade Avançada! Ou até pra alguma rainha, ou nobre
de algum reino...
_ Ah, elas já têm coisas bonitas o
bastante; eu me enfio aqui embaixo todo dia pra procurar coisas que elas vão
acabar amontoando entre outras que já têm, então posso perfeitamente separar
algo que achar melhor pra dar pra as pessoas de quem eu gosto, ou não posso? –
piscou para ela – Anda, Li, pára de enrolar e me diz que aceita, vai. Ou vai
acabar me magoando. Quero que sempre guarde isso com você, pra lembrar que tem
muita coisa bonita aqui embaixo. E que não vale a pena deixar elas ficarem se
acabando aqui.
O sorriso dele, ainda que feliz,
agora também era muito carinhoso. Era estranho, aquilo; ela já se apaixonara
antes, por rapazes que faziam bem menos por ela do que Zero, e que lhe davam
bem menos atenção, mas... com ele era diferente, ela percebeu. Gostava dele,
mais do que as palavras podiam expressar com clareza, mas era exatamente como
ele sempre dizia; eram como dois irmãos. De certa forma, ela estava próxima
demais dele para que se aproximassem de outra maneira.
_ E você, não vai ficar com nada,
então? – ela perguntou, ainda dividida entre a alegria do presente e a dúvida
se estava fazendo a coisa certa – Se a idéia é não deixar essas coisas se
perderem...
_ Ah, não sei – ele olhou em
volta, um ar levemente contrariado no rosto – Isso tem jeito de ter sido um
quarto de menina; não vou encontrar nada aqui que dê pra eu usar,
provavelmente. Não sem ficar parecendo ser um pouco esquisitão.
_ Deixa de besteira, seu tonto –
ela riu, indo até a penteadeira enquanto guardava a caixinha, que não tocava
enquanto fechada – Eu não tinha pensado em colocar uma tiara ou um lacinho em
você; tenho certeza de que deve ter algo aqui que até você possa usar!
_ Esse ‘até você’ dá uma impressão
ruim... – ele comentou, com um falso olhar abatido.
Melissa estirou a língua para ele
e começou a procurar em volta, enquanto Zero sorria discretamente do entusiasmo
dela. Como sempre, ele levara a melhor sobre seu pai. A moça sem dúvida devia
dar preferência à magia do que à ciência, mas isso não o aborrecia em nada.
Melissa também podia aprender o suficiente a gostar de escavações para ser útil
a eles, e era uma ótima pessoa; o pai tivera alguns problemas de relacionamento,
ao que parecia, com usuários de magia quando era mais moço. Zero podia entender
isso. Mas não era de sua natureza fazer julgamentos sem conhecimento de causa,
e tinha também uma certa habilidade com as suas primeiras impressões. Podiam se
dar muito bem com os recursos técnicos que tinham, claro, mas uma ajudazinha de
magia não faria mal algum, ele estava certo disso. E foi ainda pensando assim
que seus olhos detiveram-se em algo caído no chão, que não reparara antes.
_ Hmm... Não sei – Melissa olhou
em volta, um pouco incomodada – Talvez você tivesse razão, afinal, Zero. Vamos
dar uma olhada em outro quarto antes de irmos embora; talvez dê pra encontrar
algo pra você.
_ Não precisa não, Li, eu acho que
já tenho o que queria! Olha só!
A princípio, ela não conseguiu ver
bem o que era nas mãos de Zero, e então ele se aproximou para mostrar. Era
apenas um cordão com uma cruz preta de plástico, um tanto gasta do tempo e
muito empoeirada por ter ficado no solo por tanto tempo, sem qualquer figura.
Melissa já vira iguais quando ainda estava em treinamento, e sua mãe mencionara
que os mais antigos diziam que aquilo tinha algo a ver com devoção religiosa de
antigamente; de fato, algumas daquelas cruzes tinham uma figura humana nela,
mas não era o caso da que Zero mostrava. E ela pareceu reconhecer o formato.
_ Essas extremidades... Isso
parece uma Cruz de Malta.
_ Você sabe alguma coisa sobre
isso, Li?
_ Quase nada. Só vi alguns
desenhos num livro da minha mãe.
_ Bom, tanto faz – e colocou o
cordão negro no pescoço, abrindo um sorriso e ainda batendo apressadamente na
cruz e onde podia alcançar do cordão para tirar o excesso de poeira – Achei
isso aqui bonito; nunca tinha visto uma nesse estilo. É minha, agora.
_ Só isso? – Melissa quase parecia
desapontada – Depois de dar algo tão fino e elaborado como a caixinha de música
pra mim, você vai ficar só com essa cruzinha?
_ Ah, eu gostei dela – Zero
respondeu simplesmente, erguendo a cruz entre os dedos e brincando com ela com
um ar distraído – Isso é o que realmente importa.
Melissa sacudiu a cabeça, sem
conseguir entender. Zero não era realmente nada ambicioso; mesmo assim, poderia
ter escolhido algo melhor para si mesmo.
_ Lembro de ter ouvido uma vez que
muitos rapazes viraram Escavadores pra poder ficar ricos logo – suspirou –
Queria muito que conhecessem você. Será que você não se interessa de verdade
por nada, Zero?
_ Claro que me interesso, Li.
Gosto de cruzes de plástico pretas! – sorriu simplesmente – E também de ver
aquele ar de criança no seu rosto quando te dei a caixinha. E... deixa ver...
Ela corou, um tanto sem jeito. Mas
ela e Zero sentiram o cheiro estranho ao mesmo tempo, e assim que ela olhou
para onde fora a janela do quarto, seu parceiro adiantou-se e puxou a espada
polida da cintura, atravessando a madeira apodrecida com ela e ouvindo um
guincho rouco.
_ É, também me interesso em tirar
a gente daqui. Vem Li! São Sauróides!
Zero voltou-se para a porta,
conduzindo Melissa com um aceno, mas deteve-se na soleira e ergueu a pistola
que trazia até então na cintura, disparando uma vez para a direita e uma à
esquerda.
Dois Sauróides, um tipo de
homem-lagarto subterrâneo que vivia em tribos, tombaram imediatamente para
trás, atingidos entre os olhos. Zero correu para fora puxando Melissa pelo
braço esquerdo e então viu que mais Sauróides se aproximavam pelos dois
extremos do corredor, e as lanças rústicas de pedra que traziam estavam
erguidas.
Zero imediatamente lançou-se sobre
Melissa e de volta para dentro da casa, enquanto lanças vieram de todos os
lados. Algumas fincaram-se ou quebraram-se contra as paredes, Zero caiu sobre
Melissa e olhou nos olhos dela por um momento rápido.
Ela estava bem. Ele agira rápido.
Girando para tornar a encarar o exterior da casa, ele ergueu a espada numa
postura de guarda e estirou o braço e a jovem maga ouviu novamente dois
estrondos de pólvora e mais baques surdos lá fora.
_ É nessas horas que eu queria ter
umas sete pistolas! Li, a gente precisa de um feitiço de fogo ou então luz
forte! Qualquer um!
Melissa sentou-se, vendo Zero encolher-se
junto à parede enquanto mais lanças caíam lá dentro, e enquanto ele trocava o
cartucho de munição vazio de sua pistola por um outro da cintura. Seu primeiro
impulso foi o de começar a formar uma bola de fogo para assustar os Sauróides
lá fora, exatamente como Zero dissera, mas ela voltou-se então para a janela
onde Zero abatera o primeiro deles, e viu que havia mais dois ali, sibilando e
agora erguendo seus olhos para ela.
Sem pensar no que estava fazendo,
Melissa ergueu-se e agitou a mão para trás. Eles iriam atacar. Àquela
distância, daquele ângulo, só precisavam de um bom arremesso para ter a ela e
Zero.
“Não!”
Uma Bola de Fogo maior do que ela
própria esperava, sem dúvida, formou-se em sua mão recuada e ela atacou, a
abertura explodindo em chamas num impacto seco enquanto os dois Sauróides
tombavam para trás fulminados. O som despertara a atenção de Zero, mas Melissa
chamou assim mesmo.
_ Zero, por aqui! Acho que podemos
sair pelos fundos!
Ele colocou-se de pé, olhando
admirado para a abertura de bordas chamuscadas onde antes fora a janela, e
seguiu Melissa que já pulava pelo beiral. Detendo-se um instante para apontar a
pistola, Zero disparou na primeira forma esverdeada a surgir no umbral da porta
e a fez tombar de costas, também, só então saindo pela janela. Um pouco
aquecida, mas nada que ele não pudesse tolerar. E ele viu admirado os dois
Sauróides carbonizados ainda fumegando no solo.
_ Bem passados...!
_ Anda, Zero, vem logo!
Os dois correram pelo caminho
estreito daquele lado da casa, um tanto prensado entre as paredes da habitação
e a parede natural de pedra da caverna. Mais um Sauróide surgiu no final do
corredor, e Zero apontou a pistola por sobre o ombro esquerdo de Melissa,
disparando novamente e tombando a criatura.
A estimativa de Melissa fora
acertada; embora os Sauróides também pudessem usar aquele caminho para cercar
os oponentes, eram bem menos numerosos ali. Assim que saíram dos fundos da
casa, Zero e Melissa se viram diante da entrada principal do túnel por onde
tinham entrado, e também puderam ver um grupo de três Sauróides se aproximando
quase ao alcance de batalha.
Zero mais uma vez disparou,
derrubando o lagarto mais à esquerda, e sua espada longa girou na mão direita
para voltar seu gume para baixo.
O Sauróide investiu com a lança.
Zero rebateu a ponta para o alto com o erguer da mão direita, e ficou em
posição para perfurar a criatura no lugar onde o coração está em seres humanos,
fazendo também o segundo Sauróide tombar, embora este ainda se debatesse.
O terceiro deles também ergueu sua
lança com ambas as mãos, e Zero estava momentaneamente preso ao segundo
monstro, mas Melissa uniu suas duas mãos de palmas abertas na direção do
monstro, e um feitiço de fogo e impacto como o anterior atingiu o Sauróide no
peito como uma bola de ferro, fazendo-o saltar para trás com uma marca
chamuscada redonda enorme em seu tórax e cabeça, e Zero viu surpreso ao liberar
sua espada que o último Sauróide parecia ter sido atingido por uma bala de
canhão.
_ Melissa...?
_ Anda, Zero, tem mais deles
chegando!
Mais dois Sauróides, agora mais
distantes, arremessaram suas lanças na direção do casal. Uma delas zuniu
próxima à cabeça de Zero, a outra se espatifou no solo aos seus pés, e ele
instintivamente apontou a pistola para o último tiro, fazendo mais um dos
monstros tombar de costas antes de voltar-se para a saída e correr,
acompanhando Melissa lado a lado e comentando em voz alta:
_ Foi um feitiço muito legal
aquele ali. Quer me ensinar?
_ Depois! Agora anda logo!
Zero guardou a pistola. Poderia trocar
o cartucho vazio por outro completo, mas não tinha como saber se haviam mais
Sauróides no caminho à frente, e se precisaria de sua espada. E então teve uma
boa idéia para deixarem o problema para trás.
Melissa viu Zero retirar outro
cartucho de munição de sua cintura e disse, num tom de reprovação:
_ Eu posso lidar com eles à
distância por enquanto, Zero! Vamos precisar da sua espada...
_ Eu sei, Li, eu sei – ele voltou
os olhos por um momento, enquanto os Sauróides mais adiantados começaram a
surgir na curva lá atrás, e depois tornou a olhar para diante de si, vendo que
o túnel se estreitava novamente mais adiante – Eu não vou recarregar agora; tô
pensando num jeito de escapar! E vou precisar de você nessa.
Ela não entendeu muito bem, e eles
apertaram o passo até chegar à outra curva para a esquerda, onde a passagem se
estreitava. Ali, ela viu que Zero detivera-se por um momento, e estava agora
colocando o cartucho de recarga entre o arco da passagem.
_ Zero, o que...
_ Vai andando, vai andando! Eu te
alcanço já!
Melissa ficou indecisa,
voltando-se para correr mas sem querer deixar o amigo para trás. Felizmente,
Zero não demorou mais do que o necessário para que o cartucho de munição
ficasse preso entre as rochas, e então correu ainda mais depressa na direção
dela.
_ Tudo bem, Li, acho que agora já
dá!
_ Dá? Dá pra fazer o quê?
_ Aquele seu feitiço de fogo,
consegue acertar no meu cartucho com ele? Se a gente explodir o arco da
passagem com ele...
Os olhos dela se iluminaram num
sorriso, e Melissa voltou toda a sua atenção para o ponto onde vira Zero mexer.
Não conseguia ver o cartucho propriamente, claro, visto que a caverna era mal
iluminada e estava distante o bastante para que a munição parecesse invisível
entre as rochas. No entanto, seu feitiço Bala de Canhão não precisava de um
alvo tão claro; bastava que soubesse onde queria atingir.
Zero estava quase chegando até ela
quando Melissa julgou que seria seguro usar sua magia, e voltou as duas mãos de
palmas abertas na direção do ponto onde vira o amigo esconder o cartucho de
munição.
Um grupo de pouco menos de dez
Sauróides estava à beira de fazer a curva, lanças erguidas para um arremesso
assim que os alvos estivessem visíveis, quando um estrondo alto os assustou e
fez com que detivessem seu avanço, instintivamente agachando-se e empunhando as
lanças defensivamente. E o teto da passagem desabou, obrigando os mais
adiantados a recuar apressados e acotovelando-se sobre os de trás, pedras
pesadas e poeira caindo por toda a parte num estrondo ainda maior do que o
primeiro.
Havia vários Escavadores
profissionais do lado de fora do Acesso Leste das Catacumbas quando o tremor
baixo se fez ouvir. Desabamentos não eram muito comuns nos túneis que eles
faziam nos últimos tempos; experientes em seu trabalho, dificilmente um de seus
túneis caía por si só. Por isso mesmo, muitos olhares franzidos voltaram-se na
direção da passagem ao ouvir aquele som, e mais ainda ao ouvir nitidamente
passos apressados. Alguns dos mais previdentes, inclusive, ergueram espingardas
de um só tiro e pistolas variadas para a abertura enquanto os passos se
aproximavam.
E dois vultos saíram correndo,
acompanhados de uma fina nuvem de pó. Algumas armas foram engatilhadas, e o som
de metal sendo armado fez um dos fugitivos erguer os braços e agita-los,
gritando:
_ Abaixem essas armas! Abaixem as
armas eu disse, mineiros! Vão atirar? Não fugimos daqueles Sauróides pra morrer
por causa de vocês, desgraçados!
E todas as armas foram erguidas ou
guardadas, com um suspiro de alívio e resignação. Zero. O filho maluco do Seu
Dirceu. Perigoso, sim, mas de uma maneira engraçada; nada para se preocuparem
muito, ao menos.
_ Zero? – o veterano Osvaldo Silva
aproximou-se do rapaz e de sua parceira Melissa, a expressão ainda carregada,
mas cheia de alívio enquanto guardava sua arma – O que pensa que está fazendo,
nos dando um susto desses, menino? Como se o pessoal daqui já não tivesse
motivos suficientes pra querer atirar em você...
Melissa, ainda incapaz de falar
enquanto ofegava, olhou reprovativamente para o velho Escavador. Zero não era o
único caso de senso de humor ali; a maioria deles, na verdade, era uma grande
‘irmandade’, onde cada um que pudesse caçoaria mais do outro se possível. Mas
ela e seu amigo haviam acabado de sair de uma situação de risco, e isso devia
ser evidente em suas aparências; aquilo não era hora de piadas.
_ Tio Ovo... – Melissa sentiu um
momento fugaz de vingança dar-lhe um sorriso, enquanto via o velho Escavador
franzir o rosto com o apelido de que não gostava outra vez sendo usado por Zero
– O túnel leste... Fechado... Sauróides com lanças naquele acesso... Manda
lacrarem... Depressa!
_ Sauróides? – Osvaldo olhou para
Zero e Melissa, e a moça quase pôde ouvir seus pensamentos; seria outra piada
de Zero? Não; eles sabiam que ela não conseguia simular tão bem, e tanto ela
quanto o rapaz pareciam positivamente ter acabado de escapar por pouco de uma
situação difícil – Tem certeza disso, Zero? Nós já tínhamos livrado aquela
área, e não achamos mais...
_ Que bagunça é essa aqui? – outra
voz se fez ouvir, e Melissa voltou seu olhar para o Escavador que se
aproximava. Roque Batista era um dos mais antigos Escavadores da Cidade Sucata,
e sua longa experiência e coragem em serviço lhe haviam conferido uma posição
importante entre eles, e sua palavra era obedecida e respeitada. Mas sua
personalidade e modos sempre a haviam deixado desconfiada, e ela tivera uma
péssima impressão dos Escavadores a princípio, visto que ele fora o Encarregado
a quem ela tivera de se apresentar quando chegara ali, revelando seu desejo de
aprendizado. Sua mãe estava certa, outra vez, ela pensou ao comparar seu amigo
Zero e o chefe: em qualquer lugar que fosse, em qualquer ocupação que existisse
no mundo, sempre haveria boas e más pessoas.
O Encarregado aproximou-se de Zero
e Melissa, seu olhar severo sobre o rapaz empoeirado e sua companheira, e
Osvaldo tomou a frente, tentando amenizar a situação.
_ O Zero... Ele e a Melissa
acabaram de voltar do Acesso Leste, e dizem que tem Sauróides lá, Batista.
_ Sauróides? – o Encarregado
franziu ainda mais a fronte, olhando para Zero como quem olha para lixo
esparramado na rua – Que besteira é essa, garoto?
_ Não é piada dessa vez... chefe –
Zero olhou para Batista, e Melissa sabia o quanto ele detestava ser gentil e
servil com o superior; só uma situação séria como aquela faria com que ele
agisse com seriedade – Eu e a Mel bloqueamos a passagem deles por enquanto, e
pegamos alguns deles. Aquelas coisas devem se dar por satisfeitas com a carne
dos próprios mortos por enquanto, mas quando terminar, eles vão tentar abrir o
bloqueio. E vão conseguir, se tiver mais deles nos níveis mais baixos. Escuta,
eu não tô pedindo nada demais; é só deixar uns vigias de olho no Acesso Leste
por alguns dias, sem compromisso, e se...
_ Não preciso que me ensinem a
fazer o meu trabalho, garoto – Batista retrucou friamente – Muito obrigado.
_ É isso mesmo, Zero, ponha-se no
seu lugar!
Melissa impacientou-se, contendo a
custo a irritação. Vander não era, de forma alguma, desagradável aos olhos
dela. Alto, de cabelos bem cuidados e fortalecido pelo trabalho nas escavações,
ele seria muito bonito em qualquer outra situação, sem sombra de dúvida, mas o
fato de estar sempre contrário a Zero a deixava irritada com ele. O fato de ser
um eterno puxa-saco do Encarregado também era outra razão.
_ Nossa, Vander, você tava aí? Eu
nem tinha te visto! – ironizou Zero – Deixa eu continuar sem te ver, vai; tava
tão legal! E, Seu Batista, isso é sério! Se aquelas coisas resolverem colocar a
gente no cardápio deles, vai ficar difícil lutar. Eu só tô pedindo...
_ Pedindo pra desistirmos da área
de escavação que mais tem rendido Jóias Dragão de Fogo até aqui – interrompeu
Vander de novo – E isso depois, pelo que entendi, de ter nos atrapalhado o
suficiente bloqueando o caminho.
_ Ah, desculpa, Vander – Zero
tornou a ironizar, e Melissa ficou preocupada; a voz dele estava ficando mais
alta, o que não era um bom sinal – Se eu soubesse que você tinha essa vocação
pra tira-gosto de lagarto, eu deixava o caminho aberto pra você ir lá. Seu
Batista, não é preciso acreditar, só manda um grupo de inspeção bem armado pra
o Acesso Leste, então! Se quiser garantia, eu vou junto pra mostrar onde foi
que...
_ Não é preciso mandar um grupo de
inspeção pra fazer um trabalho que já foi feito, garoto – interrompeu novamente
o Encarregado, erguendo a mão para deter o rapaz – Não é verdade, Vander?
Zero e Melissa se voltaram para o outro então,
começando a compreender o que estava acontecendo.
_ Claro que sim, senhor – Vander
encarou Zero como se o estivesse vendo por cima – Eu e meu grupo de segurança
percorremos o Acesso Leste de cabo a rabo, e nos certificamos de que não há
nenhuma toca de monstro sobrando; já lidamos com o que havia por lá quando
escavamos o bairro fantasma.
_ Se vocês fizeram esse trabalho
com o mesmo cuidado que sua mãe fez seu cérebro, Vandão – Zero tornou a
retrucar – tá tudo explicado.
Melissa abafou o riso com as mãos,
e viu o grupo de Escavadores por toda a volta disfarçar mais ou menos da mesma
maneira, enquanto o rosto de Vander ficava vermelho de vergonha e de raiva e o
Encarregado os interrompeu.
_ Já chega de ficar provocando,
Zero. Meu grupo de segurança fez a vistoria; devo poder confiar neles, ou não?
_ Claro que pode, senhor – Vander
apoiou, aquele sorriso superior novamente dirigido a Zero – Não vai precisar
gastar mais dinheiro em buscas à toa, só porque alguém acha que viu alguma
coisa lá. Afinal, eu e meu grupo de segurança estamos aqui pra fazer isso pelo
senhor.
_ Sabe, Vander, três coisas que
têm demais no mundo, e eu não gosto, são baratas, puxa-sacos e ignorância, e
você é uma mistura desagradável dos três – a voz dele ficou mais alta, e
Melissa instintivamente se aproximou mais de Zero, e também mais dois outros
Escavadores. Era estranho que Vander, que era quem mais deveria estar alerta,
estivesse alheio à alteração no humor do outro; na verdade, toda a atenção dele
estava voltada para algo que não vira antes.
_ E, o que seria isso? – ele
adiantou-se, erguendo o pequeno crucifixo negro no pescoço de Zero – Tirando
artefatos lá debaixo de novo, Zero! E sem permissão! Acho que agora entendi
direito; eliminando rastros, hein? Pensou nisso sozinho, ou teve ajuda? Seria
muito fácil pra a sua amiguinha maga fechar o túnel com a magia dela, hein?
Melissa deteve-se, chocada e
indignada com a acusação, mas ela mal teve tempo para sentir-se assim, porque
Zero começou a rir. Ria, ria e não parava mais, a ponto de ela e os outros
Escavadores, se aproximando para conte-lo, se afastassem para olhar para ele
com estranheza. Mesmo Vander, que o estivera provocando, afastou-se um passo
olhando para Zero com um misto de confusão e irritação, enquanto o outro
debruçou-se sobre seu ombro e comentou, ainda rindo:
_ Vander, você é muito trouxa...!
Sem aviso, seu joelho esquerdo atingiu
Vander entre as pernas abertas com tanta força que o outro chegou a erguer-se
do chão.
Antes que alguém tivesse tempo de
detê-lo, Zero agarrou a nuca de Vander e o puxou para frente, achatando o nariz
do outro contra seu punho.
Os outros tinham apenas começado a
se mover quando Zero passou o pé por trás das pernas de Vander e puxou,
derrubando o outro de costas e de cabeça no chão. E ele já pisava no pescoço do
outro, a mão direita apertando suas bochechas para manter sua boca aberta
enquanto a esquerda puxava a língua para fora.
_ Principalmente por me provocar!
Os outros estavam sobre ele e
tentavam puxa-lo, mas ao fazer isso eles também esticavam demais a língua de
Vander, que se debatia sem conseguir respirar direito. Melissa agarrou os
ombros de Zero, e viu que os olhos dele faiscavam na direção do caído Vander,
sem parecer em nada com o amigo que ela conhecia.
_ Eu até aceito que riam de mim;
até ajudo! Mas falar besteira de uma amiga minha é coisa que eu não admito!
Pede desculpas agora, enquanto ainda tem língua pra isso, safado!
Pedidos de Melissa, dos
Escavadores mais velhos ao redor e mesmo as ordens vociferadas de Batista não
faziam qualquer diferença para Zero, que ninguém conseguia separar de Vander.
Ele podia ser muito difícil de se irritar, mas uma vez assim, era ainda mais
difícil controla-lo.
_ Zero, já chega! Tá tudo bem, eu
não me importei...
_ Zero, solta ele, garoto! Vai
piorar a situação...
_ Não está me ouvindo? Já mandei
você soltar o Vander, menino...!
_ Solte ele, Zero.
Todos voltaram-se para ver quem
falara, e isso incluía Zero. Seu Dirceu, o pai dele, estava calmamente à parte
da confusão, parado a uma certa distância apenas observando e apoiado no bastão
que usava como bengala. Os demais começaram a se afastar de Zero, apenas
Melissa ainda com ele. Olhando para o pai, o rosto ainda contrariado, o rapaz
soltou a língua de Vander e sua boca, mas seu pé direito continuava firme sobre
o pescoço do outro.
_ Ele ainda não pediu desculpas
pra a Melissa.
_ Achei que tinha dito a você pra
soltá-lo, Zero.
A voz de Seu Dirceu continuava a
mesma da frase anterior, mas seu rosto sorridente mudara para um semblante um
pouco mais sério. Zero então tirou seu pé do pescoço de Vander, embora
estivesse emburrado ao limpar os dedos que haviam segurado a língua do outro na
camisa dele, e depois, quando foi para junto do pai. E Roque Batista aproveitou
o silêncio para se queixar.
_ Seu filho causou problemas mais
uma vez, Seu Dirceu! Da última vez, o senhor me prometeu...
_ Sim, sim, eu sei – Seu Dirceu
interrompeu o outro, acenando com a mão – Pedi a meu filho para descer até o
bairro na área do Acesso Leste porque precisava de algo de lá; ao que parece,
ele voltou a aprontar. O que foi dessa vez, Zero?
_ Ele disse que encontrou
Sauróides lá embaixo Seu Dirceu – comentou Osvaldo, ao que Roque torceu o
nariz.
_ Besteira! Vander e a equipe dele
desceram lá, vasculharam tudo o que havia para se ver e não encontraram mais
monstros depois que o Grupo de Limpeza completou...
_ É claro, é claro – outra vez Seu
Dirceu cortou a reclamação de Batista – Sem dúvida nenhuma, o senhor tem razão,
Encarregado; não faz sentido perder tempo e recursos de escavação com um rumor
tão infundado.
Melissa olhou para Seu Dirceu com
admiração, sem querer acreditar no que estava ouvindo, e viu Zero olhar para o
pai da mesma forma. E o velho Escavador prosseguiu, calmo como sempre:
_ Eu tenho certeza de que todos os
Escavadores aqui vão aceitar, sem discussão, abrir o acesso que o tolo do meu
filho selou por causa dos Sauróides que não estão lá, e voltar a escavar no
bairro perdido do Acesso Leste sem ter qualquer medo de Sauróides, ou qualquer
outro monstro que por acaso também não esteja lá. Seria tolice, não é mesmo?
Afinal, se Vander disse que verificou...!
_ Se não se importa, Seu Dirceu,
sou eu quem tem que dar essa ordem! – bufou Batista, mas perdera o sentido do
que Seu Dirceu estava dizendo. Ao contrário dos demais Escavadores.
_ Isperaí um pouquinho! – bradou
do outro lado um dos Escavadores, Smite, com o sotaque carregado dos nativos do
norte – Tá querendo dizer que nóis vai descer lá com os bicho sem ninguém ir
ver isso aí? É ruim, hein? Nóis é pago pra cavar e tirar as coisa de lá, não
pra ficar lutando co’s lagarto, não!
_ Ei, é verdade! – Osvaldo apoiou
– Se Zero estiver mesmo certo, e tiverem Sauróides lá embaixo, o primeiro grupo
Escavador que descer sem apoio vai ser massacrado!
_ E pode ser que não tenham só
Sauróides lá embaixo! – gritou um terceiro. E em segundos, uma verdadeira
balbúrdia de Escavadores falando ao mesmo tempo havia cercado Batista e
deixado-o olhando para todos os lados, fumegando e sem capacidade de responder
a todos ao mesmo tempo. Seu Dirceu sorriu, deu as costas e disse:
_ Bem, eu sei que vai tomar a
atitude certa, Seu Batista. Se me dá licença, eu vou até ali cumprir o que
tinha prometido, e vou disciplinar esse meu filho briguento. Zero, Melissa,
vamos?
Roque Batista olhou furioso para o
velho Dirceu, mas não havia nada a ser feito. E ele teve que lidar com o grupo
confuso formado pelos inúmeros Escavadores, que mais e mais aumentavam em
número e em balbúrdia, com Vander ainda atordoado e dolorido sentado no chão,
esfregando as partes doloridas do corpo.
Melissa estava achando a volta
para casa muito estranha. O velho Dirceu estava calado, em seu passo lento e
tranqüilo, e Zero também estava silencioso à esquerda dela, o que era muito
estranho vindo dele. Seu amigo estava de rosto baixo, parecendo envergonhado, e
parecia estar alheio a tudo. Incapaz de aguardar mais, quando chegaram ao
sobrado onde moravam pai e filho, e ao lado da casa onde ela estava hospedada,
Melissa indagou:
_ Vai mesmo dar uma bronca no
Zero, Seu Dirceu?
O velho Escavador abriu um sorriso
leve, seguindo adiante sem responder. Passou pela porta seguido do filho, e
Melissa foi logo atrás, sem entender por quê Zero não estava tentando se
defender. Mas ela mesma não desistiria daquele jeito.
_ Ele só começou a bater no Vander
porque ele provocou, Seu Dirceu. A gente estava tentando explicar pro
Encarregado que...
_ Zero, tem um pacote embrulhado
numa lona no armário de metal lá nos fundos. Pode traze-lo até aqui? E, veja se
toma cuidado; aquela coisa é pesada.
_ Tá... Claro, pai.
Zero foi até os fundos sem
qualquer outro comentário, e Melissa ficou olhando sem compreender, enquanto
Seu Dirceu perguntou:
_ Então, menina maga, o que foi
que meu filho encontrou lá embaixo pra te dar de presente? Com certeza, algo
melhor do que aquela cruz que está trazendo no pescoço.
_ Hã? – ela estava certa de que a
caixa de música estava bem oculta em sua bolsa de cintura; ninguém fizera
qualquer comentário quando ela e Zero haviam saído do túnel! E Seu Dirceu olhou
para ela com um ar vazio, parecendo entediado.
_ Eu conheço meu filho, menina.
Ele nunca escolheria um presente pra si mesmo sem ter dado nada para quem
estava com ele. Além do mais – suspirou – ele tem falado do seu aniversário na
última semana, e que você devia ficar surpresa com a coisa que ele tinha
encontrado lá embaixo, mas nem pra mim o lazarento disse o que era. Acho que
devia ter sido um pai mais severo. Ande! Me mostre! Só estou curioso.
Ela continuava confusa com a
estranheza do pedido; achava que devia explicar o comportamento de Zero, e
porquê ele estava brigando, mas o velho Dirceu não parecia preocupado com
aquilo. Abrindo a bolsa, ela retirou a caixa de música e a abriu, e a música
dos sinos se fez presente de novo. Os olhos do velho Escavador se iluminaram
com um sorriso gentil ao ouvir a melodia, e Melissa quase sem perceber colocou
uma das bailarinas na posição, procurando o lugar certo até que ela começasse a
rodopiar sobre o espelho.
_ Agora entendo. Heh, esse guri
puxou mesmo à mãe; eu nunca tive jeito pra dar presentes. Outra coisa que ele
puxou – Dirceu olhou pela porta onde o filho saíra – foi o gênio dela. Célia sempre
foi assim como ele, uma verdadeira força da natureza por onde passava. E,
também, muito perigosa quando se irritava. Podia me fazer um favor, menina, e
não comentar nada sobre o gênio dele quando saírem? Zero fica envergonhado
quando os amigos o vêem assim, e me parece que você é a melhor amiga dele.
Melissa então sorriu; Dirceu só
estava tomando conta do filho. Zero sem dúvida estava de orelhas ardendo
enquanto buscava o que o pai mandara. Ela perguntou:
_ Então, o senhor não vai castigar
mesmo o Zero, vai?
_ Bem, eu não diria isso... – ele
olhou pela porta, vendo o filho chegando com o pacote – Essa coisa que eu o
mandei pegar tem a ver com o ‘castigo’. Zero, encontrou o que eu pedi?
_ Sim senhor.
Retirou do bolso a Jóia Dragão de
Fogo que encontrara um segundo antes do desabamento da parede, e viu o pai
sorrir com aprovação.
_ Bom! O tamanho dela é melhor do
que eu esperava; deve servir muito bem. Melissa, está com disposição para uma
viagem?
_ Viagem? – ela olhou para o velho
Escavador sem entender – Pra onde?
_ As Terras Sombrias de Fronteira,
a oeste – Dirceu respondeu, parecendo um pouco mais preocupado – Essa encomenda
veio de lá via pombo correio há três semanas, da Rainha Christabel em pessoa.
Sem poder viajar pra lá pessoalmente, visto que não vou ser muito útil se
tivermos que correr, a melhor pessoa em quem posso confiar pra ajustar esse
equipamento e chegar até lá é meu filho Zero, mas uma ajuda confiável nunca
seria demais, e a Unicórnio dele deve poder levar mais uma pessoa.
_ A Rainha Christabel? – Melissa
pareceu mais preocupada ao ouvir o nome de quem teria que encontrar do que para
onde estava indo – ‘Aquela que mata aos que ama’?
_ É, também conhecemos a reputação
dela por aqui, menina – Seu Dirceu replicou – No entanto, rainha é rainha, e
não é muito inteligente dizer ‘não’ pra uma delas; não tenho ninguém, como
disse, que entenda tanto do que criamos aqui melhor do que Zero, a não ser eu
mesmo. E a pessoa também tem que poder se defender. Outra vez, quem melhor do
que o meu filho aventureiro, que é o único Escavador que se arrisca a descer
onde ainda podem ter monstros?
_ Mas, pai... – Zero olhou em
dúvida para Melissa – Será que é mesmo uma boa levar a Mel? As Terras Sombrias
não são nada seguras, e... bom, eu não vou querer que ela se machuque, por lá.
_ Zero...!
Melissa ia protestar contra esse
super protecionismo de seu amigo. Era verdade que ela não escolheria uma visita
às Terras Sombrias como parte de sua viagem de aprendizado, mas estava
totalmente fora de cogitação ela aceitar ficar para trás mantendo-se num local
menos perigoso e deixando que ele fosse sozinho. Antes de seu protesto, no
entanto, Seu Dirceu pegou a Jóia Dragão de Fogo sobre a mesa e atirou em Zero,
acertando-o na cabeça.
_ Moleque idiota, como pode
desrespeitar sua amiga dessa forma? Quer morrer?
_ Hein?
_ Pretende envergonha-la, dizendo
que ela é indefesa demais pra ir? O risco é por conta dela, garoto! Se ela
quiser aceita-lo, você não tem nada que se opor! É um insulto à coragem dela!
Melissa – e então Seu Dirceu se voltou para a maga loira, com o rosto sério –
não vou nem tentar florear a situação. É como Zero disse; o único lugar mais
perigoso do que as Terras Sombrias na Fronteira, onde a Rainha Christabel
governa, são as terras Além da Fronteira, e não pense que estou falando apenas
porque há monstros lá. Vocês irão como prestadores de serviço pessoais à
rainha, e a fama dela faz com que ninguém que esteja do seu lado esteja seguro,
dentro ou fora das muralhas da Fortaleza de Melk. Terão que estar alertas o tempo
todo... e pode não ser o bastante.
_ Não é nada animador, Seu Dirceu
– ela se queixou.
_ Não é pra ser, mesmo – o velho
Escavador retrucou – Entenda, não há vergonha nenhuma em não ir, Melissa. E nem
eu quero seus pais me dizendo depois que mandei a filha deles sem noção de para
onde ia; as Terras Sombrias são perigosas, a Fortaleza de Melk é perigosa e,
até onde se sabe, a própria Rainha Christabel é perigosa. Eu vou mandar Zero de
qualquer forma, no entanto, e já que decidiu estudar e aprender com a gente,
tenho que te dar a opção de acompanhar ele. E então, o que diz?
Ela olhou para Zero; quase podia
ler os pensamentos dele, mesmo que nunca o tivesse aprendido com magia. Ele
queria que ela ficasse. Sabia que seria arriscado demais, e preferia correr o
risco sozinho. Mas ela também sabia que Seu Dirceu tinha razão; ela era a
parceira de Zero desde que ele a havia aceito como tal. Mesmo que seu instinto
primário fosse recusar a chance, ela se sentiria envergonhada de deixa-lo ir
sozinho às Terras Sombrias. Se a situação era mesmo tão arriscada, ele
precisaria de toda a ajuda que ela pudesse lhe dar.
_ E quando nós devemos partir, Seu
Dirceu?
Zero baixou os olhos, um pouco
pesaroso, mas Seu Dirceu sorriu. O filho julgara a moça corretamente, como
sempre. Maga, sim, mas uma boa companheira, ela nunca abandonaria um amigo,
ainda que quisesse muito. Podia confiar nela.
_ Vou terminar de empacotar
algumas coisas de que podem precisar durante a viagem; pra que cheguem lá num
horário em que não tenham que tirar Sua Majestade da cama, é melhor que saiam
pouco antes da alvorada, lá pelas cinco da manhã.
_ Vamos levar mais de um dia pra
chegar lá, pai! – bronqueou Zero.
_ Por isso mesmo, tratem de dormir
em algum vilarejo que encontrarem quando cair a noite de amanhã. Vocês não vão
querer passar a noite nos Ermos, ainda mais quando estiverem próximos às Terras
Sombrias.
_ Mel... – Zero tinha um tom
preocupado em sua voz – Você tem certeza de que quer fazer isso? Eu não vou
achar nada ruim se você não quiser ir, não precisa se sentir obrigada.
_ Claro que preciso – ela deu um
sorriso um pouco contrafeito para ele, mas sincero – Que droga de irmã sou eu
deixando meu irmãozão ir sozinho? É melhor Christabel se cuidar e tentar
nenhuma bobagem pro seu lado, ou vai ter que se ver comigo!
Capítulo 03
III – Rainha dos Horizontes
Sombrios
Christabel dormia. No passado, nos primeiros dias
após a posse dela, alguns assassinos haviam tentado em intervalos aleatórios
ataca-la durante o sono... e ninguém nunca mais os vira. Tentativas mais sutis,
como veneno, também tinham sido usadas, e também sem qualquer resultado. Então,
por menos que a idéia agradasse, e também levando em conta que o reforço dado
por ela nos ataques vindos de Além da Fronteira, os Ocidentais haviam aceitado
a rainha. Ao menos, até que algo ou alguém conseguisse livra-los dela mais uma
vez.
A Rainha dormia. Christabel exibia
uma aparência impenetrável, durante todas as horas do dia, durante todos os
dias da semana. Mesmo durante o sono, sua expressão era impassível e não
parecia trair qualquer sentimento.
Sua mente, no entanto, por
poderosa e determinada que fosse, ainda era humana. Ela não era um construto;
logo, ainda que mesmo ela não gostasse de admitir, sentimentos antigos a
assombravam durante seu sono.
Outra vez, estava com seus pais
numa viagem. Naquela época, os transportes de motor a vapor ainda não estavam
aperfeiçoados, e animais de tração levavam a carruagem enquanto eles voltavam.
Seu pai, Kane, era o mais poderoso Mago Vermelho que já viera às Fronteiras, hábil
tanto em poder de ataque quanto de defesa por magia, e ainda um mestre
espadachim. Sua mãe, Reiko, era uma feiticeira ela própria, habilidosa criadora
de armas imbuídas com poder de magia, especialmente poderosa com eletricidade.
Ele era sério e um tanto exigente, mas também atencioso e gentil, sempre
encontrando tempo para a filha em meio aos deveres de regente e comandante da
Fortaleza de Melk; ela fora doce e meiga, parecendo incapaz de se zangar mesmo
quando estavam sofrendo um dos inúmeros ataques.
Exatamente por isso, eles não
tinham o costume de levar Christabel em viagens para fora da fortaleza. Estavam
com ela naquele dia, no entanto, pois haviam ido para a área protegida, nos
Ermos próximos à Fronteira das Terras Sombrias. Outra vez, Christabel tinha
oito anos de idade, e olhara para o céu no exterior da carruagem. Nunca gostara
muito dos céus escuros de sua terra natal, que pareciam ainda mais escuros do
que em qualquer outro lugar, mesmo à noite.
Alguém dissera algo à sua direita,
e embora ela não lembrasse o que era, o tom de voz gentil e carinhoso fazia com
que lembrasse que era sua mãe. A menina olhou para o rosto dela, e lembrava
claramente da mão carinhosa acariciando seus cabelos em meio ao sorriso. E
outra pessoa falara, à sua frente, a voz forte de um soldado. Seu pai. Ela não
lembrava bem do que fora dito, mas tinha certeza de que se sentira mais segura.
Se seu pai dissera, então ninguém poderia contradizer aquela sensação.
Tudo ficava ainda mais obscuro,
então. Ela lembrava bem de uma sensação como música, uma música terrível e
bela, transmitindo uma impressão de finalidade. Lembrava que, de algum modo, as
montarias estavam mortas no chão, e a carruagem tombada. Ela olhara para
diante, e quatro ou cinco vultos destacavam-se no horizonte à sua frente, e de
algum modo Christabel soube que nunca passaria por ali. Vultos altos, envoltos
em negro, lentamente desembainhando espadas.
E viu seu pai erguer-se com
dificuldade, também. O chapéu dele estava amassado, seus olhos duros e a mão
direita firme no punho da espada, enquanto ele se firmava e se punha de pé.
Lembrava-se da mãe a seu lado, apertando-a junto a si. As vestes brancas dela
estavam manchadas de poeira negra e sangue, e então... Mesmo o olhar dela
parecia endurecido, encarando os vultos que se aproximavam galopando; ela nunca
vira sua mãe daquele jeito, e isso a assustava, a segurança transmitida ainda
há pouco esquecida por completo. Ela lembrava de que algo terrível ia
acontecer, mas de algum modo sabia que não teria como avisar os pais, mas mesmo
assim tentou. E tudo o mais passou.
O sonho evoluiu então, e embora
algo de si soubesse que estava sonhando e que já vira aquela mesma seqüência
várias vezes, Christabel de repente soube que algo novo estava acontecendo.
Agora ela estava sozinha, no que poderia ser o pátio da Fortaleza de Melk, mas
terrivelmente arruinada e deserta.
Não sozinha, então. Vultos estavam
por toda a volta, sombrios e com aparência humana. Mesmo assim, diferentes.
Após o primeiro instante, seu espanto passou. Aquilo não era nada diferente do
que ela via todos os dias; cercada por inimigos, em seu próprio lar. O que
havia de novo?
Eles começaram a se aproximar
então, em movimentos tão discretos que era como se tentassem disfarçar suas
intenções, mas Christabel sabia que eles estavam tentando fazer mal a ela.
Ergueu sua mão direita, como sempre fazia, prenunciando uma de suas magias.
Nada aconteceu, então. A rainha
olhou assustada enquanto os vultos continuavam a se aproximar, e cada vez que
ela desviava a atenção de um grupo, outro se aproximava mais depressa. Ela
então voltava sua atenção para os vultos atrás de si, para vê-los a menos de
cinco passos de si, e sabia mesmo sem ver que os que estavam à sua frente
avançavam. Voltou seus olhos para eles, e embora não tivesse uma visão clara de
seus rostos, sabia que eram hostis.
Alguém agarrou seus braços por
trás, e de repente ela estava indefesa. E então ela sentiu medo, como não
sentia desde o dia da morte dos pais. Seus poderes não estavam funcionando, e
os vultos à sua frente, agora não mais ocultando sua aproximação, tinham
tochas, bastões e foices erguidos em sua direção, como naquele dia em que ela
fora expulsa de Melk, anos antes. Desta vez, no entanto, ela sabia que eles não
correriam o risco de deixa-la voltar fortalecida, como um dia acontecera, e foi
inevitável que se debatesse.
Um som de estrondo forte, como uma
explosão, se fez ouvir à sua direita, e uma luz forte que ela via apenas com o
canto de sua visão pareceu ferir e espantar os vultos, que deixaram de se
aproximar dela.
Christabel ouviu um ronco
estranho; não parecia qualquer animal que conhecesse. Voltou-se para a luz, de
onde vinha o som, e viu um outro vulto se destacando de dentro dela; um
cavaleiro, montado num garanhão de ferro, apontando sua espada longa na direção
dos vultos sombrios diante dela, batendo os pés nos flancos do animal para que
este atacasse, numa carga contra os seus pretensos agressores, que fugiram
diante da aparição.
Algo estava errado com ela, a
rainha percebeu. Seu autocontrole não estava funcionando. Sempre capaz de se
conter em qualquer situação desde o dia em que seus pais tinham morrido,
Christabel estava trêmula, incapaz de conter a sensação de medo que deixava
suas pernas pouco confiáveis e o alívio que aquela figura desconhecida lhe
trazia, agora voltando e desmontando do garanhão de ferro, ainda não bem
definido na luz que emanava dele, mas que ela sabia estar sorrindo, de algum
modo, ao estender-lhe a mão.
E Christabel lançou-se nos braços
dele, soluçando. Estava segura de novo, como não se lembrava de estar já fazia
tempo demais. Ele estava sussurrando alguma coisa que ela não conseguia
entender, mas que lhe transmitia um conforto enorme, sua mão direita afagando
os cabelos dela. Era estranho, mas ela não estava sentindo qualquer reserva em
baixar sua guarda daquela forma; não estava errado sentir-se assim perto dele.
E ela podia até mesmo sentir o cheiro de terra e poeira que vinha dele, como o
cheiro do vento que precede a chuva, como se carregasse terra molhada.
Finalmente, a rainha despertou.
Sentou-se na cama, olhando ao redor, terrivelmente desconfiada. A primeira
coisa que fez foi voltar seus olhos hostis para a própria mão direita, e depois
de um instante conseguiu relaxar melhor; ainda podia sentir seu poder, sua
magia. Fosse o que fosse que ocorrera com ela naquele sonho tolo, não era real.
Ou... ainda não era real?
Christabel olhou em volta, certificando-se de que estava sozinha, antes de
permitir-se agarrar seus próprios braços, e sentindo que algo do tremor durante
o sonho persistia. Sua afinidade com a magia lhe concedera, quisesse ou não, o
dom da clarividência. Como resultado, o futuro não era claro para ela, mesmo
quando se intrometia em seus sonhos como agora. Contrariada, sabendo que as
névoas restantes do sono persistiriam em seus pensamentos e os embotariam
enquanto não se movesse, ela levantou da cama, jogou sobre si mesma um casaco e
foi para a varanda de sua torre.
Na sacada, a rainha contemplou os
horizontes escuros das Terras Sombrias, visíveis por toda a volta. Expor-se
daquela forma naquele horário era normalmente muito perigoso; nunca se sabia
que espécie de inimigo estava alerta, aguardando tal tolice para atacar num
momento de descuido, mas Christabel sabia que precisava do ar frio da noite para
pensar melhor no que lhe acontecera. Além do que, com a proteção que lançara
sobre os céus do castelo e a Fissura carbonizada ainda aberta desde a batalha
na noite anterior, ela sabia que só precisava manter a atenção mais aguda ao
que estava dentro das próprias muralhas, para que não fosse morta por algum de
seus muitos inimigos ali dentro.
A primeira parte de seu sonho
fora, sem dúvida, sua pena novamente revisada. Nunca poder alterar, sempre ter
que rever o momento em que sua vida mudara. Aquilo, ela sentia que merecia.
Poderia ter salvo os pais... mas não o fizera.
A segunda parte, no entanto, era
algo totalmente novo e diferente. Se... e ela estava apenas considerando a
‘possibilidade’ do evento... Se os presságios tivessem algum fundo de razão,
ela perderia seus poderes em breve. Estaria a mercê, então, daqueles que a
detestavam, mais uma vez... e, se ainda pudesse acreditar nos presságios, eles
não a deixariam escapar novamente.
Os olhos da rainha se ergueram,
encontrando os horizontes sombrios à distância, como se de lá pudesse ter
alguma resposta. Por isso, talvez, e por seu estado abalado de espírito, ela
não notou o vulto escondido pouco à sua esquerda e mais abaixo no pátio,
observando-a satisfeito. Quase fazia pena não ter trazido uma atiradeira
naquela noite; facilitaria muito seu trabalho, se Christabel morresse naquela
noite por uma flecha perdida, ainda mais quando nem seus sentidos e magia
protetora pareciam cuidar dela.
Estava funcionando. E estaria
terminado em breve.
Capítulo 04
IV – Dois Estranhos Numa Terra Estranha
O céu estava escuro; parecia que cairia uma
tempestade, mas na verdade, era o entardecer nas Terras Sombrias, o céu
dividido entre tons avermelhados e escuros, enquanto Zero e Melissa se
aproximavam mais e mais da Fortaleza de Melk.
_ Tamos quase lá, Li. Agora não
falta muito.
_ Sei, sei. Você tá dizendo isso
desde o começo do dia, Zero – queixou-se ela – Quantas vezes você já esteve em
Melk, afinal?
_ Duas, com o meu pai – ele
voltou-se para frente, conduzindo sua Unicórnio pela estrada irregular – Mas
isso foi quando eu era criança, antes de melhorarem o motor a vapor. Também foi
antes de eu aprender a pilotar e antes de ganhar essa moto.
_ Eu confiaria mais num cavalo,
Zero – Melissa reclamou de novo – Eles conseguem encontrar o próprio caminho no
escuro.
_ Ué, eu também! – Zero comentou
com simplicidade – A Unicórnio enxerga o mesmo tanto que eu; e o que é melhor,
ela não suja o chão, não precisa de comida, não morre...
_ Tá, tá bom! – ela se preocupou –
Só vire os olhos pra frente e continue prestando atenção no caminho, certo? Eu
quero chegar viva em Melk, se não se importa.
Zero riu, voltando a dar atenção à
estrada. Sabia que Melissa não estava muito à vontade, andando numa das
primeiras motocicletas a vapor, a Unicórnio, que Zero recebera do supervisor da
Cidade Avançada por ter salvo seu filho havia pouco mais de um ano, e enquanto
seguiam resolveu falar do lugar para onde estavam indo, para que sua
companheira se distraísse.
_ Ouvi falar que a fortaleza tem
esse nome por causa de um antigo guerreiro que tomava conta dela, o espadachim
Melk, que viveu aí há quase cem anos. Eles fazem a principal força de defesa
contra o que vem das terras Além das Fronteiras; entre duas cordilheiras
cerradas e escarpadas, a única forma de passar sem ter que dar uma volta enorme
e fora do território das Terras Sombrias é a passagem Penhasco, que é bloqueada
pela fortaleza. Por isso mesmo, não é nada raro criaturas do lado de lá
atacarem pra tentar forçar a passagem.
_ O povo daqui tem uma existência
bem triste, pelo que eu soube – Melissa comentou com a voz baixa, quase
lamentosa – Mantendo barreiras pra um lado, lutando todos os dias por suas
vidas, não é de admirar se quiserem partir.
_ Mas não vão, Li, aí é que tá –
Zero respondeu, começando a voltar sua cabeça na direção dela de novo apenas
para ser repreendido e rir, e Melissa bateu nas costas dele quando viu os
ombros do outro se sacudindo com o riso – Aiai! Bom, como eu dizia, eles são
considerados os melhores guerreiros do mundo, justamente por terem tamanha
experiência de combate, e isso é aquele tipo de coisa capaz de tornar uma
região orgulhosa; os Ocidentais da Fronteira são teimosos pra caramba, e nunca
se entregam. Dizem que se você morar mais de três anos em Melk, é considerado
um igual. E até aí, não se quer mais deixar os amigos pra trás. Claro, isso
presumindo que você sobreviva por três anos nesse lugar...
_ Você não está fazendo muito pela
minha disposição falando isso antes de sequer chegarmos, Zero – Melissa
retrucou com o ar vazio de seu rosto oculto no capacete – Me faça um favor; se
isso é tudo o que pode me contar de Melk, guarde o resto pra quando estivermos
saindo, depois que tiver terminado sua missão, tá bom?
Outra vez ele riu, e ela tratou de
segurar-se mais firme em sua cintura. Não tinham tido muitos problemas para
chegar até ali, e mesmo Melissa precisava reconhecer que o veículo de aparência
estranha de seu amigo era rápido, e dispensava o descanso demorado que os
cavalos convencionais pediam. Claro, ela ainda se sentia nervosa por estar
montada sobre uma máquina com uma caldeira de vapor de tamanho considerável no
tanque entre as pernas de Zero, mas admitia que ele era um bom piloto. A moto
era maior, diziam, do que os modelos antigos que por vezes Escavadores encontravam
nas ruínas, com um corpo comprido que por vezes a fazia imaginar como o outro
conseguia manejar tamanho peso, mas suas rodas de borracha revestida e o motor
de ruído suave (Zero lhe dissera que pedira para abafarem a saída, porque ele
odiava o barulho alto que a Unicórnio antes fazia) realmente tornavam a moto de
Zero uma invenção para se admirar... especialmente quando não se estava montada
nela, Melissa acrescentou para si mesma.
O horizonte pareceu ficar mais
claro, como se pudessem ver o crepúsculo sem os céus escuros das Terras
Sombrias, mas Zero deteve sua máquina e Melissa percebeu que havia algo de
incomum acontecendo.
_ O que foi?
_ Fogo. Um incêndio muito grande,
olha – apontou com a mão direita – Eu tava pensando que podia ser alguma
iluminação por causa da noite que tá chegando, mas parece que aumentou mais
bruscamente agora. Tem alguma coisa ruim acontecendo na Fortaleza de Melk.
_ Deve ser uma das batalhas
tradicionais deles. O que você acha, devemos intervir?
_ Bom, pelo tanto que falam, acho
que a capacidade dos guerreiros de lá deve ser suficiente pra lidar com isso,
Mel. Mas – olhou para trás, vendo o rosto da amiga e dando um sorriso
contrariado pelo visor amplo do capacete – vai ser chato ficar aqui parado,
esperando o fogo passar. Além disso, meu pai me mandou entregar isso o quanto
antes pra a Rainha Christabel, e acho que vai ser mais rápido se a gente for
dar uma mãozinha. Duvido que os caras de lá achem ruim receber uma ajuda, e
você?
Melissa deu um sorriso igualmente
contrariado. Conhecia Zero bem demais para se deixar enganar; ele podia estar
hesitando por causa dela, mas o fato era que ele queria participar da luta.
Podia ter a ver com ajudar os guerreiros da Fortaleza de Melk, mas a principal
razão era que ele gostava daquilo.
_ Você não vai crescer nunca, né?
Tudo bem, vamos, eu preciso mesmo testar o presente que seu pai me deu.
_ Jóia! Só não se arrisca demais,
hein Li? Você deve poder lutar bem sem ter que chegar perto de nada muito
perigoso.
_ Pára de ficar me chateando e vamos
logo, Zero!
Em Melk, a situação era no mínimo
inusitada. Uma legião de Rastejantes e soldados humanos vestidos em trajes
metálicos escuros rudes e grossos atacava agora, sendo liderada por uma figura
que mesmo os experientes soldados da fortaleza nunca tinham visto antes; muito
pouco diferente de um ser humano alto vestido com uma longa capa escura, o
desconhecido tinha chifres curtos voltados para o alto e dentes pontiagudos,
além de dedos compridos. Ele estava obviamente enfrentando mais dificuldades do
que esperara com Christabel, mas mesmo os defensores da fortaleza que tentavam
atingi-lo em meio à sua disputa não tinham qualquer chance contra ele, suas
setas e lanças sendo detidas por uma barreira invisível à sua volta, e depois
dos dois primeiros espadachins que o atacaram frontalmente terem sido cremados
por um brilho de seus olhos vermelhos, ele pôde se concentrar em enfrentar a
rainha integralmente.
Um aríete estava forçando o portão
principal que dava acesso às terras Além da Fronteira, e ninguém conseguia
subir nas muralhas para detê-los daquele lado. Os arqueiros faziam o que podiam
das seteiras, mas não era o suficiente para atingir aos que chegavam ao portão.
E Christabel não estava tendo
melhor sorte. Se por um lado ela conseguia enfrentar o estranho em igualdade de
condições, e também se isolara de outros ataques com eficiência, por outro ela
não conseguia vantagem contra ele. Nunca antes encontrara um rival à sua altura
em magia, e estava precisando de toda a sua concentração e habilidade para não
ser derrotada. Ela não podia liberar mais de seu poder sem comprometer a
muralha principal, onde ela e o desconhecido se enfrentavam, e também não tinha
espaço para destruir o aríete; não sem arriscar abrir a guarda a um ataque do
perigoso desconhecido.
Ele era estranho em mais de uma
maneira; muitos dos soldados haviam se apavorado quando aquele desconhecido
pousara sobre as muralhas, devidamente protegido por um grupo de Místicos que
fora quase completamente abatido por Christabel, a não ser a pequena hoste que
o acompanhava. Ele protegera a todos tempo suficiente para chegar sobre as
muralhas, e com exceção de alguns poucos que o haviam atacado diretamente, a
maioria do grupo defensor naquela parte havia debandado. O mesmo ocorrera com
todas as montarias que tinham ali; Christabel podia sentir algo como uma redoma
de medo ao redor dele, à qual ela própria era imune por ser uma usuária
poderosa de magia, mas não se enganava; havia algo nele que era semelhante a
todos os que habitavam ali, incluindo ela própria. Ela não sabia o que era, mas
era tão parte integrante dele quanto de todos os humanos à sua volta, e era
isso que lhe dava tamanho poder.
“Me satisfaz muito conhece-la,
jovem rainha – ele dissera na mente dela, assim que Christabel o confrontara –
Principalmente por poder comprovar que as palavras de nossos guerreiros não foi
em nada exagerada; seu dom para as artes é incomumente poderoso. Será uma honra
enfrenta-la.”
_ O prazer é seu – ela dissera – E
apenas por pouco tempo.
Mas não estava sendo tão simples.
Para a rainha, era como se as bordas da realidade tivessem sido estreitadas de
algum modo; estava consciente da passagem sobre a muralha onde estava, da
presença obscura do desconhecido diante de si mesma, destacada entre a
escuridão tão familiar das Terras Sombrias, e do confronto entre as vontades
dos dois. Todo o resto parecia não mais existir. Sentia a pressão à sua volta
como se várias garras enormes e vermelhas a pressionassem de ambos os lados, e
seus olhos cinzentos faiscavam como os relâmpagos que trovejavam à distância.
As duas mãos da rainha estavam erguidas para os céus, enquanto o desconhecido
mantinha sua mão esquerda estendida, e Christabel percebera então que o que
parecia ser uma capa longa era na verdade um tipo de asa semelhante às de um
morcego, brotando do braço do desconhecido. E embora o esforço também fosse bem
visível no rosto dele, a criatura sorria. Parecia estar gostando do confronto.
O Capitão Marco estava coordenando
os esforços no pátio, incapaz de conduzir seus homens para perto suficiente do
portão principal. Seria conveniente, ele sentia, se a feiticeira conseguisse
tirar aquele desconhecido das muralhas; com ele ali, não havia como fazer os
homens se aproximarem para dar apoio ao portão, e era questão de tempo até que
atravessassem. O melhor trabalho estava sendo feito pelos arqueiros, que
disparavam por sobre o muro e pelas frestas já abertas no portão reforçado,
além de abaterem os Místicos quando estes se arriscavam a voar sobre os muros,
despejando seus jorros de fogo nos defensores. Mas isso estava muito longe de
ser suficiente.
“Mais alguns golpes, e aquele
portão vai ceder como se fosse de cortiça! E nem mesmo nossa Carga de Cavalaria
vai resolver desta vez! Os animais estão ainda mais apavorados que os homens!
Maldição... Acho que este é o dia, enfim.”
Desde criança, Marco temera um dia
em especial; o dia em que o povo de Melk e sua bravura não seriam o bastante, e
o último tampão entre os monstros de Além da Fronteira, e a civilização que
ainda cambaleava para se reerguer, cairia. E agora, o temor parecia ter se
materializado. Havia um amargor terrível nessa idéia, uma sensação de cansaço
que descanso algum poderia sobrepujar. Mas, também... uma última determinação
que parecia maior do que todo o resto. Foi o que o fez sorrir com ferocidade
para o portão oscilante.
“Que seja, então! A vida e a luta
dos guerreiros de Melk sempre foram grandiosas; nossa queda não será
diferente!”
_ Você! – voltou-se para o soldado
à sua direita, que também olhava para o portão com ansiedade – Vá até o
aviário, e ordene que as palavras sejam ditas; que cada cidade se arme e
resguarde o mais urgentemente possível.
_ Capitão...! – o soldado, um
rapaz de rosto magro que Marco conhecia por Beto – O senhor não quer dizer
que...
_ Isso é uma ordem, soldado! – o
rosto de Marco endureceu-se – Cada segundo a mais de demora é um segundo a
menos de sobreaviso às outras cidades. Mexa-se!
Soldado algum desobedecia quando
Marco ordenava, e daquela vez não foi diferente. Os demais, em grupos esparsos
ao longo do pátio, vieram até ele e começaram uma cacofonia de vozes que ele
não permitiu que seguisse.
_ Silêncio, todos! Formação de
Barreira de Escudos no meio do pátio, e lanceiros à frente! A barricada do
portão vai ceder a qualquer momento, e nossa rainha parece incapaz de nos
proteger por enquanto.
_ Ela pode muito bem ter...! –
começou um dos tenentes, mas Marco o interrompeu com brusquidão.
_ Silêncio! – ele não tinha
qualquer amor pela rainha, nem isso era segredo, mas era contra sua política e
princípios voltar qualquer hostilidade contra Christabel durante uma batalha.
Fosse como fosse durante o resto do tempo, ela era aliada deles nas lutas, e
ele sentia que a concentração dela seria de algum modo prejudicada se tivesse
que enfrentar hostilidade deles, também, e foi por lembrar disso que não houve
mais críticas naquele momento – Aquele desconhecido está tomando toda a
concentração de Sua Majestade ao que parece; acredito, então, que os guerreiros
da fortaleza terão que provar a si mesmos capazes de enfrentar demônios e
inimigos sem magia, ou será que decaímos tanto assim?
O orgulho de guerreiros ainda era
o ponto mais sensível dos homens ali, e Marco fora sábio em explorar isso;
mesmo entre seu medo, os soldados crisparam seus dedos nos cabos das armas e
suas expressões ficaram mais ferozes. Como Marco, tornariam seu último dia no
mundo o dia final também para seus inimigos, se já havia chegado a tal ponto. E
o Capitão acenou afirmativamente ao reconhecer a decisão no rosto de seus comandados.
_ Muito bem; preparem-se para
resistir e repelir a invasão! Novatos, no portão oriental! Evacuem todas as
mulheres e crianças que puderem!
Entre os soldados também havia
mulheres; ali, elas eram tão ferozes quanto os homens, algumas até mais. Mas
nem todas eram guerreiras, e a tendência das mães era sempre proteger primeiro
aos filhos, e um êxodo começou no acesso oriental da fortaleza, enquanto todos
os homens ainda disponíveis se acumularam no pátio central, numerosos o
bastante para que quase não houvesse espaço para passagem ao lado deles.
Um som semelhante a um rugido, que
Marco não reconheceu, veio da retaguarda deles e ele voltou-se intrigado. Os
monstros ainda não haviam passado; como era possível que houvesse algo rugindo
ali? Teriam se infiltrado sob a terra...? Mas, se Christabel já tornara aquilo
impossível...!
_ Dá licença, dá licença! Abre
alas! Sai, caramba!
A voz que ouviu era desconhecida
para ele; uma voz masculina, mas jovem. Pelo menos quatro anos mais novo do que
ele próprio. E o som ficava mais e mais alto, a ponto dele finalmente poder ver
a massa de guerreiros no centro do pátio mover-se para dar passagem. E Marco
viu um engenho motorizado deter-se diante dele, deslizando sobre duas rodas e
com duas pessoas sobre ele: um rapaz, o piloto, decerto a pessoa que falara, e
uma garota aproximadamente da mesma idade que o outro, loira e com uma
expressão preocupada olhando para o alto das muralhas, onde a feiticeira
combatia a criatura desconhecida. Alheio a isso, o rapaz apoiou o pé esquerdo
no chão e voltou-se para ele.
_ Acho que você deve ser o líder,
aqui. Oi! Eu sou Zero. Temos uma encomenda pra a Rainha Christabel, mas acho
que chegamos numa hora ruim, né?
_ Hora ruim? – Marco não podia
acreditar no que estava ouvindo. Aquele imbecil devia ser cego! – Estamos
prestes a tombar, seu tolo! Saia daqui e leve sua companheira com você; é tarde
demais...!
_ Tá, desculpa da piadinha, vamos
direto ao que interessa – e sua fisionomia mudou, ficando séria – Aquele portão
vai cair logo; por que não estão apoiando?
_ Quem você pensa que é para...
_ Zero! – a moça loira na garupa
do desconhecido chamou, apontando para a direção onde a rainha lutava com o
desconhecido – ali em cima... Eu não sei o que é, mas é muito forte... E parece
que tem uma... escuridão ao redor, eu não sei... Um frio muito forte, uma
sensação de tristeza...!
_ Sua amiga é uma feiticeira? –
Marco indagou.
_ É por causa daquilo, então? –
Zero ignorou a pergunta do capitão – Escuta, acha que podem me seguir se eu
atacar na frente?
_ Como?
_ Quando os caras entrarem – Zero
fez Melissa descer de sua garupa, explicando enquanto o fazia – se aquela coisa
é obra deles, vão esperar por um campo aberto e sem oposição, e vão ganhar
terreno. Mas se sofrerem uma carga inesperada, acho que dá pra virar a mesa.
Vou atropelar eles com a minha moto, mas não posso com todo mundo. Preciso que
me apoiem, tá bom?
_ Afinal, quem é esse garoto? – um
soldado perguntou atrás deles, e Zero olhou com reprovação para ele.
_ Garoto? É, devo ser mesmo. Mas
sou o garoto que vai bater de frente com aqueles fulanos, e desafio qualquer um
dos valorosos Cavaleiros da Fortaleza de Melk a ficar pra trás enquanto eu luto
sozinho!
Os olhares se enrijeceram, e um
novo ânimo pareceu brotar em todos; mesmo Marco sentiu-se influenciado. Por
enquanto, o mais importante não era quem era aquele garoto atrevido que a jovem
feiticeira chamara de ‘Zero’, nem se ele estava montado numa máquina ou não;
nenhum estrangeiro nunca pudera clamar ser mais bravo do que um Ocidental de Melk,
e seria ridículo permitirem que isso mudasse em seus últimos momentos! Além
disso... Marco não pôde deixar de sorrir com a ironia... Zero estava cavalgando
a única montaria que dificilmente seria afetada pela aura de pânico do
estranho.
_ Zero... – Melissa começou, mas o
outro estava acelerando, a Unicórnio agora parecendo um animal ansioso sob seu
dono, e ele sorriu para ela.
_ Tá tudo bem, irmãzinha – ele
piscou para Melissa, e então apontou para o muro – Escuta, eu não sei o que tá
acontecendo ali em cima, mas acho que você sabe. Faz o que puder, tá bom? E se
cuida até eu voltar.
_ Tá... tudo bem – ela ergueu um
pouco o capacete de Zero e deu-lhe um beijo rápido sobre os lábios, recebendo
dele um olhar mais do que admirado – Veja se volta logo, seu idiota.
E correu para longe do pátio,
enquanto Zero ficava olhando para ela, um pouco atordoado. Ao notar que os
outros estavam olhando para ele, baixou seu capacete sobre o rosto e
concentrou-se nos portões. Faltava pouco agora.
Outro baque. Ele viu as portas
vergando para dentro, e acelerou. A Unicórnio estremeceu abaixo dele, e Zero se
concentrou no que ia fazer. Um tanto impetuoso, impensado, mas era melhor
assim, ao menos daquela vez. Se pensasse, perderia a coragem.
Outro estrondo, e ele viu o
suporte vergar. Era isso; o próximo baque ia derrubar o portão. Ele tivera a
chance de medir os intervalos entre um e outro ataque, e quase podia ver os
portadores do aríete do lado oposto naquele momento; retirando-o, puxando para
trás novamente, erguendo...
Zero acelerou, e desta vez não
deteve sua moto, arremetendo na direção dos portões. Não havia no que pensar
naquela hora, a mão esquerda no guidão e a direita erguendo a espada, enquanto
aumentava a velocidade. Tinha a impressão de ouvir um brado dos Guerreiros de
Melk atrás de si, tinha a impressão nítida de que o ar parecia ficar mais
gelado à sua volta, mas ele sentiu que estava apenas no seu exterior; por
dentro, ele estava fervendo! E não podia pensar a respeito, nada de imaginar
que podia ter calculado mal, e o portão ainda precisaria de mais um golpe para
cair. Confiava no que aprendera com o pai, confiava que o golpe seguinte ia
derrubar as portas, porque senão...
Um rugido estranho se fez ouvir em
algum lugar lá embaixo, e Christabel teve dificuldades para se conter, porque
aquele som era absurdamente familiar. Mais do que ela, no entanto, o estranho
demônio que a enfrentava parecia ter ficado tremendamente admirado, porque
voltou sua visão para baixo e distraiu-se do confronto por um segundo e meio.
Apenas um segundo e meio.
Mas era o segundo e meio de que a
rainha precisava. Num gesto brusco e poderoso, Christabel agitou seus dois
braços na direção do desconhecido, e de repente o mundo inteiro pareceu voltar
à sua percepção, enquanto as garras opressoras que tentavam se fechar à sua
volta agora agiam sob seu comando, e algo que parecia uma imensa armadilha de
ferro fechou-se sobre o desconhecido. Não era físico, propriamente, nem
visível, mas o efeito fora semelhante, porque o desconhecido curvou-se e estremeceu,
dentes cerrados e tentando estender novamente a mão na direção de Christabel; a
luta ainda não estaria perdida, ele ainda poderia resistir, virar o jogo se...!
Um novo ataque, agora de outro
lado, ao mesmo tempo que o desconhecido sentia que era arremessado
violentamente contra as pedras do alto da muralha, e incinerado ao mesmo tempo.
Um feitiço incendiário de Impacto! E... não da rainha. E, lá embaixo, a
luta...!
O portão caíra, e os invasores
tinham acabado de largar o aríete. A mesma estranha força de seu aliado que
lhes dava vitalidade e disposição para atacar também parecia assustar seus
inimigos; nenhum deles tentara opor-se ao seu aríete, nenhum deles ficara sobre
as muralhas para atacá-los! A odiosa fortaleza finalmente cairia!
E então, ele viera. A maioria
deles sequer vira o que tinha sido; um estrondo alto, parecendo uma fera, e
então algo se abatera sobre eles, atingindo-os como o aríete antes atingira os
portões, e logo depois dele os Guerreiros de Melk irromperam, arrastando o
grupo parado no portão como uma onda irresistível. Homens da fortaleza
avançavam com lanças, espadas e escudos, abrindo caminho mediante o que
pareciam alvos parados, surpresos demais com a primeira investida, e liderados
por uma criatura que nunca tinha sido vista nas terras Além da Fronteira, um
monstro de metal sobre rodas de borracha cavalgado por um rapaz que brandia uma
espada longa.
Zero tivera a nítida impressão de
ver uma bola de fogo cair do alto da muralha, à sua direita, quando sua
Unicórnio atravessara a massa opositora, e ele agora estava virando para
esquerda enquanto os soldados de Melk expeliam os pretensos invasores com
vigor. A sensação de frio à sua volta se fora, e ele sentia-se mais leve. Fosse
o que fosse que Melissa tinha percebido devia ter sido desligado, porque a
incapacidade de agir acabara. Acelerando e tornando a arremeter contra o grupo
de atacantes, ele viu insetos de quatro patas se agitando como braços, de pé
sobre mais duas, mas debandando enquanto os arqueiros de Melk agora chegavam aos
portões, e começavam a fazer fogo direto do portão aberto. A fortaleza prestes
a tombar agora estava revidando com força, e os que antes tinham vigor para
atacar agora temiam a vingança dos defensores. E, Zero percebeu divertido, o
ronco do seu motor quando acelerava parecia aumentar aquele medo dos atacantes.
_ Jóia! – ele sorriu,
aproximando-se ao máximo do tanque de sua moto, reduzindo a área de alvo caso
alguém tivesse flechas – Mais umas duas voltas e eu mando esses caras pra casa,
espero! Vamos lá, gracinha, hora de trabalhar!
O portão estava seguro, com
guerreiros e arqueiros postados lá e se espalhando, abrindo mais e mais a área
sob seu comando e obrigando os atacantes a recuar. Zero passou para a direita
da porta principal, agora curioso com a coisa que vira caindo. Na primeira
oportunidade que tivesse, iria se aproximar para ver; ainda podia ver algo
queimando no chão...
Um vulto se levantou! Em chamas,
algo parecido com um braço estirado em sua direção, Zero de repente teve a
impressão de que o ar crepitava à sua volta, um instante antes de ser atingido
por um relâmpago. Fora rápido e repentino demais para que desviasse, ou fizesse
qualquer coisa, e ele praguejou enquanto era atingido.
_ Diabos! Que luz é essa? Ai, meus
olhos!
No susto, ele largara a espada,
mas apesar de ter sentido algum formigamento na pele em primeira instância,
continuou arremetendo, agora na direção do vulto em chamas, que novamente
pareceu ficar surpreso.
_ Ainda vivo...?!
_ Desgraçado... Você me assustou!
Zero sacou a pistola de sua
cintura e atirou enquanto se aproximava, o vulto flamejante cambaleando para
trás como se fosse bruscamente empurrado enquanto era atingido uma vez, e
duas... e após a quarta vez, Zero fez a Unicórnio empinar e atropelou aquela
figura estranha, passando sobre ele com um solavanco e usando todo seu esforço
para não cair. Sentindo, mais do que sabendo que ainda não estava terminado,
Zero brecou sua roda dianteira e fez meia volta, detendo-se então para ver
sobre o que tinha acabado de passar.
A figura ainda queimava, embora
agora fosse menos. Estava ferido, evidentemente; uma ampla marca redonda sobre
seu peito, como se atingido por uma bala de canhão... obviamente, obra de
Melissa... o chifre do lado direito de sua cabeça quebrado, quatro buracos de
bala em seu peito, três sobre onde estaria o coração num ser humano... o nariz
estava quebrado, onde fora atingido pela roda da frente da Unicórnio, enquanto
outra marca de roda desenhava-se sobre o peito... e ainda assim, a coisa ficou
de pé diante dele, com um sorriso maldoso e parecendo surpreso. Zero apontou
para ele sua pistola, dizendo em voz clara:
_ Você é positivamente a coisa
mais feia que eu já vi, e comparando com o Vander, isso quer dizer alguma
coisa!
_ Você não é daqui – a coisa
falou, como se ignorando o que tinha ouvido – E sobreviveu a um relâmpago à
queima-roupa. Estranho... Não estou acostumado com isso.
_ Ah, aquilo era um relâmpago? –
Zero sorriu, um ar tolo no rosto – Pensei que fosse uma lanterna! Fraquinho, eu
achei.
_ Incomum, de fato – a fronte do
desconhecido começou a sangrar muito, e vinha da base de seu chifre esquerdo,
ainda intacto – Não vou esquece-lo, rapaz. Qual o seu nome?
_ O nome é Zero, e o prazer foi
meu – ele destravou a pistola, apontando-a com mais firmeza – E apesar do mau
jeito, acho que preciso pedir pra você ir embora. Já fizeram uma tremenda
bagunça, sabe, e vamos passar a noite inteira arrumando; então, se não se
importa... vai consertar esse chifre quebrado.
_ Irei. – ele abriu seu sorriso de
dentes pontiagudos, mas se aquilo impressionara Zero, não ficou evidente em seu
rosto – Meu nome é Ahl-Tur, Mestre dos Arcanos. Voltaremos a nos encontrar.
O demônio abriu seus braços então,
e as asas pareceram encher-se com um vento não natural que o carregou para o alto,
enquanto Zero o mantinha sob mira e retrucava:
_ Eu não te perguntei nada,
Altura. E se voltar aqui, com esse guarda-chuva nas costas, te quebro esse
outro chifre! Ouviu?
_ Meu nome é Ahl-Tur, e não Altura
– a voz sombria soou do alto, enquanto ele se tornava menos visível no céu
escuro – E vou esperar ansioso por lhe dar essa oportunidade, menino Zero. Com
certeza.
_ Menino o caramba, idiota! – Zero
bradou para os céus, embora algo em sua razão lhe dissesse que o outro não
estava mais ouvindo – Volta aqui agora, e vamos resolver isso no braço! Anda!
Mas o assunto já tinha terminado,
ao menos por ora. Zero ficou olhando para o céu, por onde vira a criatura
desaparecendo, e lentamente baixou a pistola vazia e a guardou na cintura. Por
um instante longo, ele ficou quieto e olhando para o alto, enquanto ao seu
redor as forças atacantes recuavam.
_ Zero! Zero, você tá bem?
Melissa veio correndo assim que os
guerreiros e arqueiros de Melk começaram a expulsar os oponentes. A luta
daquela noite terminara; sem seu líder e o poder do medo que ele espalhava,
assustados pelo monstro de metal que surgira de lugar nenhum, eles haviam
perdido a vontade de lutar. E Melissa veio em sua direção, procurando por seu
amigo, aliviada em ver que, exceto por alguns arranhões e contusões menores,
Zero parecia ileso.
_ Zero? Zero, você tá me ouvindo?
Ele então baixou seus olhos para
ela e, por um momento, Melissa pensou para si mesma que nunca o havia visto tão
imponente ou seguro de si. Se aquela era a expressão de Zero quando ele havia
atravessado a massa de atacantes, não era de admirar que eles tivessem fugido.
_ Zero...
Então ele arregalou os olhos e
desequilibrou-se, quase caindo da moto entre suas pernas, e balbuciando:
_ Ele me tacou um raio! Um raio,
Li, daqueles relâmpagos assim! – e abriu as duas mãos, palmas viradas uma para
a outra, significando algo de tamanho grande – Que susto! Eu podia ter morrido!
_ Quem fez o quê? – ela olhou na
direção para onde Zero estava olhando, no céu, e então olhou novamente para ele
com ar de dúvida – Alguém acertou você com um relâmpago? Pára de falar
besteira, se isso fosse pra valer você estaria morto!
_ Mas foi mesmo, Li! É sério, eu
vinha vindo pra esse lado, aí aquela coisa levantou e...
_ Zero, você provavelmente bateu a
cabeça por ter caído da moto, ou coisa parecida. Anda, vamos pra dentro que eu
vou procurar alguém pra cuidar de você.
_ Mas é sério...!
Christabel estava olhando do alto
da muralha, enquanto a feiticeira loira desconhecida se aproximava do portão
principal, onde os soldados já clamavam em altos brados pela vitória. Mas ela
não estava olhando para a moça, e sim, para o rapaz que a acompanhava, falando
sem parar e tentando convencê-la do que tinha lhe acontecido... e trazendo sua
montaria de metal consigo. O ronco daquela máquina, a forma como ele chegara...
Aquilo era idêntico ao sonho que a rainha tivera na noite anterior. Ele chegara
em seu momento de maior necessidade, dando a ela a chance de derrotar ainda
outro inimigo, e levando seu povo à vitória.
Viu que os soldados o estavam
saudando lá embaixo. Nada estranho demais, decerto; as multidões sempre amavam
um vencedor. E aquele rapaz, fosse quem fosse, havia conseguido para eles uma
vitória quando tudo o que esperavam era morrer com honra.
Os olhos dela faiscaram. Ela os
conduzira para muitas vitórias, também, mas nunca tivera qualquer
reconhecimento. E não ia permitir que algum recém-chegado montado num aparato
barulhento tomasse o que lhe era devido.
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