Ola´, todos! E vamos seguir com mais esse capítulo da Rainha, agora com todos os seus defensores e ela própria a caminho de Tria. E, pra matar o tempo...
(...)
A cavalgada se deu pouco depois, assim que Christabel se reuniu ao grupo, e ela pôde reparar nas expressões de seus companheiros que Zero não estava exagerando. Laírton parecia muito pálido, embora mais forte do que depois do ferimento, e embora Melissa estivesse com uma fisionomia melhor, ela já usara muito de sua magia durante aquele dia, e não se recuperaria o bastante para outra luta sem descanso adequado. Ela própria, Christabel, achava que dados os riscos, deveriam tentar chegar à Cidade Sucata como pudessem, para não se arriscarem a outro ataque no meio do caminho; sendo ela o alvo principal, poderia seguir adiante com os mais capacitados e deixar os enfraquecidos em Tria, para se recuperarem, mas Zero opôs-se veementemente à idéia.
_ Tinham caçadores esperando a gente em Garland. Se também tiver gente assim em Tria, e o grupo estiver dividido, quem ficar pra trás vai ser alvo fácil. Não; chegamos até aqui juntos, e vamos terminar a viagem juntos, um cobrindo as fraquezas do outro. É nossa melhor chance, Christie.
Christabel tinha suas objeções, mas reconhecia o mérito no que Zero estava dizendo, e sabia dentro de si mesma que os outros partilhavam da opinião dele. Ela poderia seguir em frente sozinha se quisesse, mas sabia que não estava tão bem quanto aparentava, e se fosse forçada a lutar novamente, poderia não conseguir vencer; não sem ajuda. Assim, mesmo contrariada, concordou com o plano do mecânico e não discutiu mais por ora.
Apesar do silêncio costumeiro da estrada semidestruída por onde viajavam, a cavalgada foi muito animada, com os amigos comentando e se felicitando pelo que tinham conseguido durante a luta contra os seis corpos de Sáurio, apenas Christabel parecendo entediada com a atitude deles. Sari, na verdade, estaria de acordo com ela se ambas se falassem; como caçadora, ela reconhecia o valor da discrição, e os viajantes estavam fazendo barulho suficiente para atrair a atenção de qualquer outro ser mítico como Sáurio que habitasse naquelas paragens. Mas Daniel, Melissa, Zero e Laírton estavam conversando à vontade, e Sari não conseguiu manter-se à parte por muito tempo, logo percebendo que tanto Zero quanto Daniel estavam na verdade mantendo os exaustos Laírton e Melissa acordados com a conversa.
_ Sério mesmo, Laírton, eu nunca vi nada parecido! Sabia que vocês Religiosos tinham uns poderes parecidos com magia, mas esse negócio de expulsar o veneno do corpo só com a força de vontade...!
_ Na verdade... foi o poder da fé, amigo Zero – Laírton corrigiu cortesmente, sorrindo com cansaço – A crença dos Irmãos da Ordem dos Religiosos se baseia na idéia de que, com fé no Senhor, não há o que não possamos conquistar. Foi tal força que me manteve de pé durante a luta contra o corpo serpente de Sáurio... e foi o mesmo poder que, com a permissão do Senhor, me auxiliou a expulsar o veneno.
_ Fantástico, realmente – Daniel concordou, assombrado – Tínhamos Irmão Cristóvão em Melk, mas eu sempre pensei nele apenas como um padre, solene e distante, zelando pelo bem estar das nossas almas e meditando; nunca o vi demonstrar esse tipo de habilidade, mesmo durante nossas lutas.
_ Acredito... que ele nunca tenha sido forçado a demonstra-la, jovem Daniel. Ou, talvez, ele o tenha feito longe de seus olhos. Mas todos nós somos capazes, em nível maior ou menor, deste tipo de recuperação ou resistência. Através do poder de Sua criação, Nosso Senhor nos fortalece, reanima e nos cura. Ou, se for de Sua vontade... nos reúne com Ele, quando chega nossa hora.
_ Está dizendo que... a cura pode falhar? – perguntou Melissa, curiosa.
_ Certamente, cara Melissa. O poder do Senhor através de um dos Irmãos depende exclusivamente da vontade Dele; nossa fé nos sustenta, mas a decisão não é nossa. Se por vontade de Nosso Senhor, nossa hora tiver chegado, nem mesmo todos os Irmãos na face da terra serão suficientes para realizar uma cura simples. É verdade que o poder da fé aumenta com os números, mas a decisão final não é nossa.
_ Fascinante – Sari comentou, admirada – Mas, desculpe por parecer cética, Laírton... Mas como podem ter fé em algo tão inconsistente? Quero dizer, não há qualquer garantia, então, de que terão êxito...
_ É algo que não se pode explicar, Sari – Laírton sorriu, de cabeça baixa por um instante – Você coloca seu corpo, vontade e habilidades inteiramente à disposição de Nosso Senhor, e confia Nele. Acredita piamente de que Ele sabe o que há para vir, conhece o desejo de nossos corações, mas também as armadilhas no caminho que escolhemos. Uma das primeiras lições na Ordem é que ‘as pessoas acreditam que sabem o que querem’.
_ ... Hã, sei. E...? – Zero perguntou, voltando a cabeça para Laírton sem entender. E levando alguns tapas afobados de Sari até voltar a atenção para a direção.
_ Por vezes, caro Zero, nós tomamos decisões que só nos fazem mais infelizes na posteridade. Claro, todo o ser vivo exerce sua própria vontade, de acordo com o Livre Arbítrio dado a nós por Nosso Senhor, mas a verdade é que boa parte dos seres humanos continua com muito pouco conhecimento de como escolher seu caminho. E é espantoso o número de pessoas que, em confissão, se arrepende das escolhas que faz. Os Irmãos da Ordem aprendem a aceitar que, quando as circunstâncias nos movem em outra direção, por vezes o caminho que escolhemos não é o correto para nós. Acreditamos em presságios, sinais da natureza, e na força de eventos alheios à nossa vontade. As pessoas se aborrecem quando as coisas não caminham como elas desejavam; os Religiosos aprendem a se adequar às circunstâncias. Aceitamos o caminho que Nosso Senhor nos designa, e agimos de acordo com ele. E, acreditem ou não, freqüentemente deparamos com dias mais satisfatórios e felicidades maiores ao final da jornada.
Christabel sentiu-se estranhamente incomodada com as palavras de Laírton, e voltou-se mais de uma vez para o Religioso, sentindo como se estivesse falando com ela. Mas ele parecia alheio à sua pessoa enquanto falava. Sari interrompeu a contemplação da Rainha, comentando:
_ Ainda assim, parece muito difícil confiar em algo tão etéreo, não? Como ter certeza de que se é ouvido?
Laírton sorriu para ela, um sorriso sereno e parecendo muito satisfeito, como se esperasse pela pergunta.
_ ‘Fé’ não depende de certeza, menina Sari. Ao contrário; a dispensa totalmente. Me diga, o que se consegue de verdade por meio da certeza das coisas?
_ Segurança, eu acho – Daniel comentou, pensativamente – Conhecimento sobre as coisas. Não?
_ Conhecimento? – Laírton sorriu – Há eons atrás, as pessoas ‘sabiam’ com toda a certeza de que a Terra era o centro do universo, e era achatada. Estudiosos se opuseram a essas idéias, e o conhecimento da maioria ficou abalado; as pessoas ameaçaram queimar os sábios, porque eram hereges. E os sábios foram obrigados a se desculpar em público, embora ‘soubessem’ que estavam corretos, como o tempo se encarregou de provar. A única coisa que se pode saber com certeza absoluta, caro Daniel, é que nada é absolutamente certo. A maioria das idéias não é baseada em conhecimento absoluto sobre coisa alguma; como se pode ter certeza de algo, neste pé?
Ninguém respondeu de imediato, embora Christabel tivesse suas próprias reservas. Havia coisas de que podia estar certa, e sabia disso, mas se recusava a tomar parte da discussão. Queria que fizessem silêncio, e não tomar parte da bagunça. Os outros contemplaram mais um pouco, mas Zero sorriu:
_ É o tipo de coisa que eu gosto de conversar. Nada é absoluto, certo Laírton?
_ É a minha crença, amigo Zero, embora não possa impô-la sobre ninguém mais. O conceito da fé é muito abstrato, e a maioria das pessoas gosta de evidências, algo em que se apoiar quando defende uma idéia, ou algo em que basear uma experiência passada. – Laírton comentou solenemente – Não posso oferecer nada disso. Contemplem; temos um belo entardecer à nossa volta.
Laírton tinha razão enquanto mostrava a paisagem vespertina. O céu estava tomado de cores alaranjadas, rubras no horizonte e com trechos de azul espalhados, enquanto as nuvens pareciam flutuar sobre eles. Uma brisa agradável soprava nos rostos de todos, prenunciando o escurecer breve. E Laírton explicou seu raciocínio:
_ Se tamanha majestade, tamanha perfeição na obra ainda não basta para convencer muita gente de que existe alguém maior por trás de tudo, um arquiteto divino que orquestrou tamanha grandiosidade, que argumento ou prova dada por mim poderia fazer diferença? Sou apenas uma parte muito menor do todo.
Christabel olhou novamente com desconfiança, Daniel e Melissa, com algum assombro e Zero com um sorriso para Laírton. Apenas Sari parecia continuar cética. E o Religioso completou:
_ Como os outros Irmãos, expresso minha fé a quem tem curiosidade, mas não tenho como obrigar quem quer que seja a acreditar em mim, e nem pretendo faze-lo. A verdadeira crença vem do coração, não das palavras pretensiosas de quem pode estar enganado.
_ Desculpe por dizer, Irmão Laírton – Daniel comentou, num tom de quem se desculpava – mas me parece uma postura muito diferente da do nosso Irmão Cristóvão. Ele sempre procurava nos ensinar sobre o credo da Ordem, e sobre...
_ Ah, sim, é o que a maioria dos outros Irmãos faz – Laírton sorriu placidamente – É o que meus superiores costumavam me dizer para fazer, também. Infelizmente, este é um dos meus vários defeitos; não consigo insistir com quem quer que seja para fazer algo contra a vontade. Por minha própria crença, a ‘fé’ não pode ser ensinada por outro.
_ Mas, nesse caso – Melissa indagou, curiosa – você não tá fazendo algo contrário ao que a Ordem prega, Laírton?
_ Uma escolha inevitável de venenos, cara Melissa – Laírton deu um sorriso triste para ela – agir contra as regras da Ordem, e ser um pária entre meus Irmãos... ou me obrigar a agir como eles queriam, ser aceito entre eles, e ser apenas uma fachada. Que ‘fé’ eu poderia expressar, se eu mesmo não acreditasse no que diria?
Outra vez o grupo ficou silencioso, Melissa e Daniel olhando com admiração ao entender o ponto de vista do amigo, enquanto Zero sorria ainda mais abertamente. Alguém que era honesto consigo mesmo, ele realmente gostava daquilo. Laírton pagava o preço de ter todos seus iguais contra ele, desde que pudesse manter-se íntegro e sem causar mal a ninguém. Uma coisa a se respeitar. Sari estava tentando entende-lo; parecia ilógico demais. E Christabel, por fim, sentiu que não poderia ficar totalmente em silêncio; havia algo a dizer.
_ Mesmo ‘Seu Senhor’ deve desapontar-se com você, então. Se vocês pregam o crescimento do espírito pela superação de seus defeitos, e você admite que tem uma deficiência que não consegue sanar, está sendo falso com o que ensina da mesma forma, não? Como pode pedir a quem quer que seja que transcenda suas deficiências, se você não é capaz de faze-lo?
Apesar de novamente incomodados com a tendência imutável de Christabel de procurar defeitos no que era dito, foi inevitável que apenas Zero não olhasse para Laírton com ar de dúvida. E o rosto do Religioso pareceu contrair-se por um momento, em pesar. Mas ele tinha um sorriso triste em sua expressão ao confrontar a Rainha.
_ Verdade, Rainha Christabel. Por meus atos e fraquezas, eu sou falho mesmo naquilo em que me dedico com maior paixão, que é ser um Irmão da Ordem dos Religiosos. Nosso Senhor com freqüência me exige isso, e nada posso oferecer em resposta. Nada, a não ser compensar tal deficiência na conversão dos demais com trabalho dobrado onde sou forte. Viajo mais, vivo em menor conforto, batalho e curo com mais freqüência do que boa parte de meus Irmãos, e ainda sei que não será o bastante, na hora do acerto final. Mas me ponho sempre à disposição Dele, e Ele sabe que aceitarei qualquer preço a ser pago quando for a hora . Além disso – ele sorriu um pouco mais abertamente agora, parecendo conformado – esta é uma boa maneira de me manter humilde. Enquanto tiver uma deficiência tão séria como parte do meu ser, não me tornarei arrogante ou confiante demais do que sei fazer, e sempre me lembrarei de que não sou perfeito. Por isso, não esperarei perfeição em ninguém; uma lição que, aliás, muitos ainda carecem de aprender, ao que me consta.
Do riso escancarado de Zero ao sorriso discreto de Sari, Christabel foi a única a não achar graça na alfinetada sutil de Laírton, que sorriu placidamente quando ela meramente tornou a ficar em silêncio.