Tuesday, May 19, 2015

Finalmente!

Salve, pipous!!! Depois de tanto tempo, saudações novamente do Louco!!

Várias vezes (menos do que eu gostaria, verdade seja dita), meus convites pra conhecidos, amigos e amigos conhecidos (espera aí, acho que isso ficou esquisito...) pra ler esta história acabaram batendo numa barreira inexorável. 'Ah, eu gostaria, mas a história tá posta de trás pra frente'.

Eu sempre digo, não sou bom com essa coisa de computador (gosto de usar, mas é uma máquina de escrever metida a besta pra mim ^^). Cheguei a procurar nas configurações (que consegui achar) do blog, e não achei jeito de reverter. E assim, ficou o impasse...

Até agora. Se não achei um jeito moderno e prático, fiz o que sei fazer, reverti pra forma antiga... e postei tudo de novo, uai. Em ordem invertida.

Sim, valeu a pena a trabalheira. Aproveitei pra rever alguns dos meus momentos favoritos e lembrar de tomar vergonha nessa minha cara preguiçosa; Christabel é uma história que eu adoro reler (por menos que eu consiga ser imparcial, como autor), e fazia tempo que tava parada.

Trago a todos que gostam de ler, e agora numa ordem aproveitável, minha rainha das terras sombrias. Conforme meu projeto a la 'Crise nas Infinitas Terras', pode ser interessante pra quem vir Christie e seu marido Zero (é, é o nome dele. Não, que apelido? Eu disse 'nome'!) ter onde procurar o lugar onde os dois se conheceram, e como eram as coisas no começo da relação deles. Espero que a comparação seja divertida pra leitores tanto quanto foi pra o autor que vos fala ^_^

Boa diversão, minna-san!

Capítulo 01

I - Christabel


Nas Terras Sombrias, no Extremo Oeste do Continente Regalia, outra contenda se iniciara. Sendo as Terras Sombrias a porção civilizada que fazia fronteira com o Fim do Mundo, ataques das bestas selvagens vindas de lá eram lugar comum, ainda que fosse uma ocorrência lamentável. Muitas vidas postas em risco, e no entanto, os Ocidentais não conheciam outra vida. Nem tinham qualquer opção ou escolha por si mesmos.
A Fortaleza de Melk, nomeada em homenagem a um grande herói do passado, era o lar da família real; atualmente, reduzida à jovem rainha Christabel, odiada e respeitada por todos. Flechas dos defensores de Melk enxameavam pelas muralhas e abaixo, sendo devolvidas por projeções semelhantes que alguns dos monstros, uma espécie chamada pelo povo de Melk de ‘Artilheiros’, ou ‘Cascudos’, expeliam de seus corpos. De ambos os lados criaturas e guerreiros caíam, a batalha equilibrada. Era um grupo menor de monstros que atacava daquela feita, e no entanto, haviam trazido alguns dos mais resistentes de suas espécies para causar uma boa batalha. Certamente estavam avaliando as defesas da fortaleza novamente, mas isso não interessava aos defensores. Para o povo de Melk, não havia o que se discutir; eles lutavam, venciam ou morriam. O resto era resto.
Marco, capitão da guarda e principal defensor das muralhas, comandava os esforços no alto enquanto auxiliava seus colegas e comandados contra os Rastejantes, criaturas da altura de um homem, corpo de inseto e quatro garras para atacar ao mesmo tempo, além de presas com tenazes capazes de partir ossos com um único golpe. Com uma pesada espada de ferro na mão direita e um machado curto na esquerda, o comandante mostrava aos seus soldados o que fazer, ao invés de perder tempo dando ordens em meio á cacofonia do combate.
Um Rastejante escalou a muralha logo adiante, e Marco correu até a fera. O monstro já livrara seu primeiro par de braços quando o defensor chegou a ele, e girou sibilando enquanto suas tenazes estalavam na direção de Marco.
Seu machado desceu contra a cabeça da coisa, e Marco viu as duas garras da fera agarrarem seu pulso, enquanto as tenazes se aproximavam para decepa-lo. Aproveitando o movimento, o capitão enterrou a espada de sua mão direita na boca aberta da criatura, que engasgou com o aço e estremeceu, ainda agarrada em sua outra mão.
E Marco retirou sua espada com um tranco, girando-a num movimento de pêndulo para decepar as garras do monstro como este quisera fazer a ele, chutando-o depois para baixo e sobre seus colegas que ainda escalavam.
Olhando adiante, Marco viu um de seus comandados com uma lança, tentando sem sucesso repelir outro Rastejante. A tentativa do soldado de perfurar a criatura foi detida quando os dois primeiros braços do monstro agarraram a arma, e os outros dois agarraram o homem, que gritou enquanto as tenazes se abriram para mastigar sua cabeça.
Marco arremessou seu machado com precisão e força, cravando-o até a metade na cabeça do monstro insetóide, que tombou com um sibilo surdo, ainda agarrado ao soldado. E ele acenou agradecido para o capitão, que já se engajara em combate com um terceiro Rastejante.
Os arqueiros da fortaleza então deram um brado de alerta e terror, começando a disparar para o alto. O ataque agora vinha de duas frentes, enquanto um grupo de Místicos se aproximava voando. Semelhantes a enormes cabeças com cauda, braços instalados em suas bochechas, os Místicos eram demônios flutuantes que atacavam à distância, as mãos bem abertas com dedos longos cintilando enquanto jatos de flamas começavam a vir deles, explodindo como lava onde quer que tocassem. Talvez, de fato, a razão para aquela investida não fosse uma verdadeira invasão, mas a julgar como seguiam os eventos, era uma questão de tempo até que tal coisa se tornasse possível. Os guerreiros humanos estavam fazendo o melhor de si como sempre, mas já começava a não parecer o bastante.
Passos soaram pelo corredor que conduzia do Palácio Central às muralhas, então. Passos solitários, como sempre. O longo vestido ondulando no ritmo de seu caminhar, protetores de metal em seus pulsos e peito, cabelos lisos escuros emoldurando um rosto de pele clara, olhos cinzentos e lábios vermelhos, com um olhar ainda mais duro do que o metal que usava como proteção. A Rainha acabara de se envolver na batalha.
Os Místicos guincharam nos ares, enquanto pareciam reconhecer seu alvo principal emergindo da torre, e da formação que se aproximava quatro jatos flamejantes convergiram ao mesmo tempo na direção da saída, mediante gritos de alerta e debandada geral dos soldados.
Christabel ergueu seus olhos para os demônios que a atacavam, sinalizando como se ordenasse que parassem onde estavam. E os quatro jatos de fogo místico explodiram no nada, como se uma cúpula invisível protegesse a rainha. Embora resíduos inevitáveis do ataque tivessem espirrado como fogo líquido por toda a volta, espalhando gotas de fogo, Christabel estava absolutamente ilesa. E seus olhos cinzentos pareciam gelo.
Seu braço esquerdo abriu-se, enquanto uma névoa luminosa abrangeu seu movimento, espalhando-se por entre as muralhas como se flocos de neve luminosa fossem soprados por um vento invisível. E onde quer que houvessem Rastejantes tocados pela névoa, estes estremeciam, guinchavam e caíam de costas, morrendo aos poucos. Dentro dos muros a luta foi lentamente diminuindo, enquanto os defensores corriam para dentro da proteção de sua Rainha e os monstros morriam, um a um.
E os Místicos tornaram a atacar, abrindo sua formação num grupo amplo, e depois em dois. Cascudos lá embaixo começaram a disparar suas salvas na direção da Rainha, que recolheu seus dois braços para si mesma.
Os dardos detiveram-se diante dela. Alguns, a pouco mais de cinqüenta centímetros da regente, mas nenhum próximo o bastante para causar-lhe qualquer mal. Christabel então abriu seus braços, um olhar severo voltado para os demônios voadores enquanto os dardos lançados pelos Cascudos abriam-se numa chuva reversa, fulminando vários dos Místicos que se aproximavam, reduzindo a nuvem a poucos remanescentes que preferiram fugir da Rainha.
E a regente então voltou seu olhar para os seres lá embaixo. Rastejantes e Cascudos, em sua grande maioria, sibilando e começando a seguir o exemplo de seu apoio aéreo. Não tornariam a atacar aquela noite. Estavam satisfeitos com o teste.
Mas Christabel não estava. Um olhar de viés para o lado mostrou-lhe que alguns dos seus soldados haviam sido feridos, alguns poucos mortos. E Místicos tombados e uns poucos Rastejantes não bastavam. Ainda que morrer fosse algo comum nas Terras Sombrias, ela teria sua compensação. Seu braço direito esticado, movido para a direita, a mão de palma voltada para baixo, a Rainha abriu uma enorme Fissura de um lado a outro diante da muralha, com largura e comprimento suficiente para engolir a todos os monstros lá embaixo, fazendo-os desaparecer com um estrondo ensurdecedor.
Terminara. Christabel voltou seus olhos para dentro das muralhas. Os soldados, arqueiros, todos os sobreviventes, olhavam para ela com um misto de admiração e terror, e ela não surpreendeu-se. Havia algo vazio dentro de si que sempre se movia nestes momentos, quando nenhum reconhecimento ou saudação lhe era dado. Nem sequer um sorriso. Sempre o mesmo.
Os olhos da Rainha voltaram-se para a Fissura, e ela explodiu em chamas, sendo completa com lava ardente. Aquilo levaria a noite inteira para resfriar-se, e dificultaria muito o acesso de qualquer ser pela terra por mais aquele dia. De mãos abertas unidas por um momento, Christabel ergueu os braços e então os abriu amplamente acima de sua cabeça, e um pólen rosa-purpúreo expandiu-se a partir de suas mãos, perdurando mais do que a névoa luminosa que usara antes, e erguendo-se aos céus na forma de uma cúpula sobre as muralhas. Aquilo bastaria como proteção pelo resto da noite.
_ Cuidem dos feridos.
Ela não precisava dizer mais coisa alguma. Lá embaixo, tendo saltado das muralhas para fazer luta com seu rival no pátio diante dos portões, o Capitão Marco afastou um filete de sangue que ameaçava cobrir seus olhos e ficou observando enquanto a Rainha tornava a entrar em sua torre. Ela era indiscutivelmente poderosa, e uma grande vantagem nas lutas deles ali, contra as feras. Mas...
_ Maldita feiticeira...
Nenhum dos Ocidentais tinha qualquer amor pela jovem Rainha. Pouco importava que ela fosse sua governante, ou uma arma tática útil; ela se impusera a eles como regente num momento de crise, e nunca teria sua confiança. Não importando o que fizesse.
Os murmúrios haviam começado, ela bem sabia. Quase podia ouvi-los, ou talvez os estivesse imaginando, ou talvez ambas as coisas; Christabel sabia muito bem. Por si mesma, não se importava; não queria acreditar que se importava. Estava em seu lugar de direito, pouco importando se agradava ou não. A ironia da coisa toda era o motivo principal pelo rancor e desprezo do povo, e sua falecida mãe com certeza riria, seu belo sorriso de criança, se a filha lhe pudesse contar qual era a sua relação com o povo, e o porquê.
“Mamãe... Papai...!”
Algo dentro de seu peito, como uma velha ferida momentaneamente perturbada, a incomodou por um instante como um fantasma de dor, e Christabel olhou fixamente para frente enquanto avançava, toda a sua concentração voltada para si. O passado estava morto. Ela era o que era. Não porque agradasse ou desagradasse alguém; era o que ela fora ensinada a ser. E nada mais importava.

Capítulo 02

II - Melissa



Eles eram loucos!
Era a única descrição dada a qualquer um da Cidade Sucata, quando um forasteiro chegava. Fora o que Melissa também dissera ao chegar ali, pouco menos de quatro meses antes. Estudiosos da cultura antiga, arqueólogos e engenheiros viviam ali escavando um ‘grande veio’ de tecnologia, e reparando o que podiam para uso da sociedade moderna. Ela fora até ali mais por curiosidade, e pela insistência de sua mãe que estudasse algo mais além de magia negra. Segundo D. Milena, ‘conhecimentos em mais de um campo ajudam muito quando viajando pelo mundo, pois quando um deles falhar, pode-se improvisar com o outro’. E, surpresa das surpresas para ela, Zero concordara imediatamente quando ela dissera tal coisa.
Agora ela o auxiliava nas escavações do pai. Os dois se davam muito bem, e ele pedia a ela que o ajudasse na extração das antiguidades nos setores mais profundos das ruínas sob a Cidade Sucata. O pai dele, Seu Dirceu, como sempre torcera o nariz. Para um estudioso, o homem era muito cabeça-dura e desconfiado, principalmente no que tocava à magia; eles ali lidavam com tecnologia e máquinas! Não tinham o que fazer com usuárias de magia!
Mas o filho Zero intervira por ela, e Seu Dirceu acabou aceitando a presença da jovem maga. E ela novamente sorriu na penumbra enquanto seguia o amigo, que ia adiante com uma lanterna. Razoavelmente alto, de cabelos castanhos escuros e quase sempre com um sorriso no rosto, Zero via graça em tudo (“Com um nome desses, o que você queria que eu fizesse?”, ele costumava perguntar quando comentavam seu modo risonho de encarar as coisas), e sempre ouvia aos dois lados de uma discussão. E era muito corajoso, também; embora outros pesquisadores e escavadores tivessem filhos que gostavam de ajudar nas extrações, a maioria deles não gostava de descer às catacumbas. Zero era uma das raras exceções.
Mais estranho era que ela não se importava de descer, tampouco, desde que ele a acompanhasse. Isso também gerou alguma inveja dos demais, que se ressentiam um pouco do fato de Zero e Seu Dirceu quase sempre encontrarem o que havia de melhor nas ruínas, e pior ainda era que a linda jovem loira o seguisse por toda a parte. E, claro, ninguém conseguia acreditar quando ele dizia que eram ‘apenas amigos’.
_ É sério, gente! A Li é só minha amiga, quase uma irmã pra mim.
_ Ah, tá bom. Até parece – respondiam na maioria das vezes – Quer me convencer que você anda por aí com aquela gracinha e não faz nada com ela?
_ Claro que não! Eu sou contra o incesto!
Então a discussão morria, com resmungos, risadas e comentários murmurados. Melissa se admirava de como ele quase sempre respondia a mesma coisa; tinha uma paciência e tanto, Zero.
_ E então, o quê vamos procurar hoje, Zero? Ou nem você sabe?
_ Ah, as duas coisas, Li – ele voltou um pouco o rosto, o sorriso outra vez em sua voz – Eu vim procurar algo que o pai pediu, mas se encontrar algo mais... não vou chorar, né?
_ E acha que vai...
_ Espera só um pouco...! Aquilo...
Ele escalou uma parede irregular inclinada quase como se fosse uma aranha, para preocupação de Melissa. Era fato conhecido que as paredes por vezes se enfraqueciam com as escavações, e não era nada seguro ou inteligente subir nelas. O próprio Zero já se ferira duas vezes fazendo tal coisa, e sempre aconselhava os outros a não agirem daquela forma. Claro, ela pensou com ar entediado, uma coisa era dizer como agir; outra, bem diferente, era agir adequadamente com os próprios conselhos.
_ Zero, você tá se arriscando de novo. – ela comentou com voz vazia.
_ Nah, espera aí, Mel, que acho que isso era...!
Ele estava tão absorto que a chamara pelo seu apelido ‘sério’; segundo ele, só a chamaria assim quando algo importante estivesse acontecendo, visto que era como todos os outros a chamavam, e ele preferia evitar agir como os outros. Eternamente do contra, era como Zero se classificava. Mas Melissa arregalou os olhos quando viu que a pilha de entulho que devia ser a base da parede começou a estremecer, enquanto o amigo remexia em algo que vira lá em cima.
_ Zero, desce daí! Essa coisa toda vai...!
“Desabar” perdeu-se em meio ao estrondo da parede descendo, com Zero em cima dela. Sem pensar no que estava fazendo, Melissa recuou dois passos depressa, quase pulando, enquanto gesticulava na direção de Zero, as duas mãos voltadas na direção do amigo e mantendo-o onde estivera no momento da queda, impedindo que se machucasse nos escombros. Foi um estrondo barulhento e levantou poeira, mas não foi mais do que o que seria de se esperar dentro da caverna fechada. Ela ainda tossia um pouco quando ouviu a voz risonha de Zero.
_ Grande Li! Valeu! Agora... será que dava pra me baixar? Eu tô ficando um pouco enjoado, flutuando aqui, sabe...?
_ Zero, seu besta, você podia ter...!
O raciocínio ficou sem completar, visto que, em meio à sua irritação, Melissa suspendeu bruscamente a aura que levitava seu amigo, deixando Zero cair sobre os restos da parede, e rolar até que parasse no chão, mais sujo ainda de poeira e com um ar meio tolo no rosto.
_ Era isso que podia ter me acontecido? Aaaaah... Agora entendi.
_ Zero, minha nossa, desculpa, você tá bem?
_ ‘Bem sujo’, acho – e piscou para ela – mas nada quebrado, não. Aiai... Tava ignorando meu próprio conselho de novo, né? Foi mal.
_ Desculpa, acho que eu preciso praticar mais; não devia ter me desconcentrado.
_ Ah, deixa pra lá, Li. – e ficou de pé, batendo em si mesmo para tirar o excesso de poeira – Pelo menos consegui segurar isso aqui, antes de você me levitar. Dá só uma olhada!
Era uma pedra vermelha cristalina, sem uma forma definida. Melissa olhou curiosa, mas sem entender muito bem.
_ Você causou esse desabamento e quase se quebrou inteiro pra pegar um rubi?
_ Isso não é ‘rubi’ nenhum, Li! Lembra o que eu te falei que o Dr. Oscar usou na minha Unicórnio pra ela andar? Era uma dessas daqui!
_ Uma jóia Dragão de Fogo? – Melissa olhou com maior interesse – Tá falando sério?
_ Bom, é cedo pra dizer sem o meu pai dar uma olhada, mas acho que é sim. Bem que o meu velho falou, esse lugar tem algo que atraía os Vermes da Pedra antigamente. Alguma mudança no ambiente fez eles migrarem pra longe, mas os restos dos que morreram antes disso continuam por aqui. Foi isso que eu vim buscar pra ele, hoje.
_ Ele vai tentar de novo construir um motor a vapor? – Melissa pareceu preocupada – Aquelas coisas são perigosas, Zero; pressão, caldeiras... Teve aquela explosão...
_ Êêêêêê, vamos parar? – bronqueou o outro – Não vai acontecer nada com o Seu Dirceu, não; meu pai é um gênio! E... não, dessa vez tem algo a ver com um negócio que vamos mandar pra as Terras Sombrias; ordem da rainha de lá, eu acho.
Melissa sentiu-se visivelmente mais aliviada. Pouco importando o que Zero dissesse, explosões e acidentes de trabalho sempre a preocupavam. No que lhe dizia respeito, ela sempre estaria por perto para ajudar o amigo, mas...
_ Agora vem comigo; já cumpri com minha obrigação pro véio – ele sorriu – Tá na hora da gente explorar um pouco.
Ela deu um sorriso um pouco fraco. Pessoalmente, por vezes se perturbava em observar as ruínas e pensar que pessoas haviam vivido ali havia tanto tempo, e tudo o que restava deles eram os prédios que haviam construído. E pelo jeito, Zero conseguiu adivinhar os pensamentos dela.
_ Olha, Li, eu sei o que você tá pensando. No começo, eu tinha esse tipo de pensamento, também. Ficava triste quando tentava imaginar as pessoas andando entre aqueles prédios, sem saber o que ia acontecer com eles.
_ ... Mesmo?
_ É – ele acenou que sim com a cabeça – Mas sabe o que mais? Meu pai veio comigo uma vez e comentou que o bom no fim das contas era que eles tinham existido. Não tinha tristeza nenhuma no fato de eles terem acabado. É a sina de tudo o que existe, no fim das coisas; se acabar.
Melissa parecia ainda mais entristecida pensando nisso, mas Zero, o sempre alegre e intempestivo Zero, gentilmente ergueu o rosto dela pelo queixo, e Melissa ficou admirada com a voz dele e seu olhar, tão incomuns do que costumavam ser.
_ Não tem problema nisso pra mim, irmãzinha. Ao invés, eu prefiro explorar o que eles deixaram. Eles fizeram tudo o que podiam durante o tempo deles, e ia ser um tremendo desrespeito se a gente deixasse as coisas incríveis, maneiras, de conhecimento antigo se acabar. Não; a gente tem que fazer o que puder pra recuperar tudo o que for possível. Ao menos... enquanto ainda estamos aqui. – e sorriu – Você não concorda?
Melissa então sorriu também, e acenou que sim com a cabeça, segurando a mão dele. Este era seu querido amigo Zero, tão passível de tristeza quanto qualquer pessoa, mas se recusando a deixar que ela levasse a melhor sobre ele. Ou sobre qualquer um próximo a ele.
_ Então... me mostra alguma coisa que a gente não deve deixar desaparecer... ‘Irmãozão’.
Sorrindo, Zero puxou Melissa pela mão e os dois entraram ainda mais nas catacumbas, embora ele agora tivesse na mão esquerda uma pistola. Parte da ciência antiga recuperável, armas de fogo eram resumidas a espingardas de dois disparos, no máximo, ou pistolas de até quatro tiros. Era uma dessas que Zero portava naquele momento, e Melissa achou melhor se preparar, também. As ruínas eram fascinantes, mas embora os Vermes da Pedra tivessem sido afastados por alguma mudança do ambiente, eles não eram os únicos monstros que vagavam por ali.
(Os sons de vozes eram bem claros, assim como os cheiros. Carne! Mais carne fresca! A rainha precisava de mais alimento; estava na época dos ovos!)
Penetrando ainda mais nas catacumbas, Zero e Melissa chegaram ao que parecia ter sido uma grande avenida. Era estranho que aquilo estivesse sob o solo para a moça, mas Zero contou a ela que, de acordo com os estudos, o evento que vitimara aquelas pessoas também havia levado sua cidade para o interior da terra. O mais curioso, pelo menos para o rapaz, era que as coisas haviam sido tanto quanto bem conservadas depois de soterradas.
_ Já tinha vindo aqui antes duas vezes, antes de você vir pra Cidade Sucata, Li. Em um ou outro lugar a gente ainda achava alguns esqueletos, mas a maioria tava deserta.
_ Argh, esqueletos...! – Melissa franziu o rosto – Vocês deviam ficar felizes quando não encontravam nada, então!
_ Ao contrário, Li, isso é muito curioso – Zero olhou para ela, algo implícito em sua expressão – Mesmo levando em conta os bichos que eventualmente apareciam e deviam se alimentar dos cadáveres, você não acha estranho que um bairro, como esse aqui parecia ser, tivesse tão pouca gente? Pra onde foram os corpos dessas pessoas? Saíram andando e foram procurar uma caverna mais profunda?
_ Nem brinque com isso! – Melissa estremeceu – Magos necromantes têm o péssimo hábito de reanimar cadáveres, criar zumbis e esqueletos pra proteger suas habitações, e isso sempre me assustou desde que eu era criança! Lembre-se que, pra quem lida com magia, isso de corpos mortos saírem andando não é impossível!
_ Nossa, tem razão! Tudo bem, me desculpa; eu também não fiquei muito animado com essa idéia, não – Zero olhou ao redor, um pouco mais apreensivo – Mas... bom, talvez não seja isso. Não sei, pode ter sido só decomposição natural, mesmo.
_ Er, Zero...?
_ Aiai, tá bom, tudo bem. Vamos só até ali, numa casa que eu passei perto uma vez, e dar uma olhada rápida. Depois a gente sai. Tudo bem?
Melissa acenou que sim com a cabeça, e eles seguiram em frente, o caminho iluminado pela lanterna de Zero. Aquela conversa toda sobre mortos, mortos-vivos e dentro de uma caverna profunda como aquela sem muito espaço para fugir em caso de necessidade havia perturbado até os nervos do rapaz, e ele sabia que sua amiga agora estava mais apreensiva ainda para partir. Mas havia algo que ele queria verificar primeiro.
(Pouca carne dessa vez, mas serviria. Ao menos para a rainha, serviria. Estava chegando a época de ousarem um pouco mais e se afastarem dos seus túneis, a continuar como ia, mas... primeiro, a refeição da rainha)
Os dois entraram. A porta da frente há muito já desaparecera, consumida pelo desgaste do tempo e já enfraquecida pelo evento que colocara aquele pedaço de cidade sob a terra. Lá dentro contudo, apesar das paredes rachadas e do piso avariado, apesar do desgaste e do cheiro mofado dentro da casa, muito do que um dia fora ainda existia.
_ Zero, todas essas coisas ainda estão...!
_ Legal, né? – ele sussurrou para ela, outra vez sorrindo – eu também achei muito bacana, ver que tudo continua do mesmo jeito que deve ter sido quando ainda estava lá em cima. Vem, acho que era aqui...
Os dois então seguiram por um corredor um tanto irregular, que levava mais para dentro da casa. Entre duas portas meio ruídas, um pouco bloqueadas por escombros, eles entraram no que devia ter sido um quarto de adolescente; talvez uma garota.
_ Era aqui mesmo. Vem, Li, que era isso que eu queria te mostrar.
Zero caminhou até uma penteadeira, e Melissa não teve como conter a curiosidade então. Ele já estivera ali antes, então; o que havia visto de interessante ali que não buscara antes? E ouviu um som curioso de música enquanto Zero se voltou para ela.
_ Pra você, Melissa. Feliz aniversário.
Os olhos da jovem maga brilharam de admiração. À primeira vista, o que Zero tinha na mão era apenas uma caixinha marrom retangular sem qualquer atrativo maior, com dois espelhos dentro; um na tampa, o outro servindo como um fundo falso para a caixa. O interessante nela no entanto era a pequena manivela que seu amigo girara, agora girando sozinha enquanto uma música suave de sinos tocava.
_ Desculpa, Li, eu queria ter descoberto o nome dessa música antes, mas como o Dr. Oscar já adiantou que vai ser muito difícil encontrar referência lá na Cidade Avançada...
_ Zero... que lindo! Como você achou isso...? Como foi...
_ Ei, eu sou um Escavador também, não sou? – ele sorriu e piscou – Meu pai disse que chamavam isso de ‘caixas de música’; nomezinho previsível, se quer saber. E, olha só! Tem mais...!
Ele retirou da gaveta duas pequenas figuras de vidro com bases redondas, e Melissa olhou encantada quando ele as colocou sobre o espelho de fundo falso, e elas começaram a rodopiar ao som da música. As duas figuras pareciam-se com bailarinas em postura de dança, e Melissa mal percebeu quando Zero passara a caixa para suas mãos.
_ Tá um pouquinho suja, mas é de coração, Li. Espero que você tenha gostado.
_ Gostado? Zero, eu adorei! – ela o abraçou empolgada e beijou seu rosto – É lindo, lindo mesmo! Mas... não tem problema você me dar? Se tudo o que é descoberto aqui sempre tem que ser estudado, desmontado...
_ É por isso mesmo que eu resolvi dar ela pra você, Li. Até escondi aqui, porque sabia que não iam descer pra as catacumbas tão cedo com um grupo de pesquisa. Na minha opinião já funciona muito bem e não tem nada quebrado; ia ser um desperdício de tempo e também uma judiação fazerem essa caixinha passar pelos procedimentos de sempre. Sei que você vai cuidar melhor dela.
_ Mas... Mas... – ela estava feliz, muito feliz, mas ao mesmo tempo seu senso de responsabilidade lhe dizia que aquilo era errado – Zero, isso é muito caro! Depois de limpo e reparado, venderiam por fortunas na Cidade Avançada! Ou até pra alguma rainha, ou nobre de algum reino...
_ Ah, elas já têm coisas bonitas o bastante; eu me enfio aqui embaixo todo dia pra procurar coisas que elas vão acabar amontoando entre outras que já têm, então posso perfeitamente separar algo que achar melhor pra dar pra as pessoas de quem eu gosto, ou não posso? – piscou para ela – Anda, Li, pára de enrolar e me diz que aceita, vai. Ou vai acabar me magoando. Quero que sempre guarde isso com você, pra lembrar que tem muita coisa bonita aqui embaixo. E que não vale a pena deixar elas ficarem se acabando aqui.
O sorriso dele, ainda que feliz, agora também era muito carinhoso. Era estranho, aquilo; ela já se apaixonara antes, por rapazes que faziam bem menos por ela do que Zero, e que lhe davam bem menos atenção, mas... com ele era diferente, ela percebeu. Gostava dele, mais do que as palavras podiam expressar com clareza, mas era exatamente como ele sempre dizia; eram como dois irmãos. De certa forma, ela estava próxima demais dele para que se aproximassem de outra maneira.
_ E você, não vai ficar com nada, então? – ela perguntou, ainda dividida entre a alegria do presente e a dúvida se estava fazendo a coisa certa – Se a idéia é não deixar essas coisas se perderem...
_ Ah, não sei – ele olhou em volta, um ar levemente contrariado no rosto – Isso tem jeito de ter sido um quarto de menina; não vou encontrar nada aqui que dê pra eu usar, provavelmente. Não sem ficar parecendo ser um pouco esquisitão.
_ Deixa de besteira, seu tonto – ela riu, indo até a penteadeira enquanto guardava a caixinha, que não tocava enquanto fechada – Eu não tinha pensado em colocar uma tiara ou um lacinho em você; tenho certeza de que deve ter algo aqui que até você possa usar!
_ Esse ‘até você’ dá uma impressão ruim... – ele comentou, com um falso olhar abatido.
Melissa estirou a língua para ele e começou a procurar em volta, enquanto Zero sorria discretamente do entusiasmo dela. Como sempre, ele levara a melhor sobre seu pai. A moça sem dúvida devia dar preferência à magia do que à ciência, mas isso não o aborrecia em nada. Melissa também podia aprender o suficiente a gostar de escavações para ser útil a eles, e era uma ótima pessoa; o pai tivera alguns problemas de relacionamento, ao que parecia, com usuários de magia quando era mais moço. Zero podia entender isso. Mas não era de sua natureza fazer julgamentos sem conhecimento de causa, e tinha também uma certa habilidade com as suas primeiras impressões. Podiam se dar muito bem com os recursos técnicos que tinham, claro, mas uma ajudazinha de magia não faria mal algum, ele estava certo disso. E foi ainda pensando assim que seus olhos detiveram-se em algo caído no chão, que não reparara antes.
_ Hmm... Não sei – Melissa olhou em volta, um pouco incomodada – Talvez você tivesse razão, afinal, Zero. Vamos dar uma olhada em outro quarto antes de irmos embora; talvez dê pra encontrar algo pra você.
_ Não precisa não, Li, eu acho que já tenho o que queria! Olha só!
A princípio, ela não conseguiu ver bem o que era nas mãos de Zero, e então ele se aproximou para mostrar. Era apenas um cordão com uma cruz preta de plástico, um tanto gasta do tempo e muito empoeirada por ter ficado no solo por tanto tempo, sem qualquer figura. Melissa já vira iguais quando ainda estava em treinamento, e sua mãe mencionara que os mais antigos diziam que aquilo tinha algo a ver com devoção religiosa de antigamente; de fato, algumas daquelas cruzes tinham uma figura humana nela, mas não era o caso da que Zero mostrava. E ela pareceu reconhecer o formato.
_ Essas extremidades... Isso parece uma Cruz de Malta.
_ Você sabe alguma coisa sobre isso, Li?
_ Quase nada. Só vi alguns desenhos num livro da minha mãe.
_ Bom, tanto faz – e colocou o cordão negro no pescoço, abrindo um sorriso e ainda batendo apressadamente na cruz e onde podia alcançar do cordão para tirar o excesso de poeira – Achei isso aqui bonito; nunca tinha visto uma nesse estilo. É minha, agora.
_ Só isso? – Melissa quase parecia desapontada – Depois de dar algo tão fino e elaborado como a caixinha de música pra mim, você vai ficar só com essa cruzinha?
_ Ah, eu gostei dela – Zero respondeu simplesmente, erguendo a cruz entre os dedos e brincando com ela com um ar distraído – Isso é o que realmente importa.
Melissa sacudiu a cabeça, sem conseguir entender. Zero não era realmente nada ambicioso; mesmo assim, poderia ter escolhido algo melhor para si mesmo.
_ Lembro de ter ouvido uma vez que muitos rapazes viraram Escavadores pra poder ficar ricos logo – suspirou – Queria muito que conhecessem você. Será que você não se interessa de verdade por nada, Zero?
_ Claro que me interesso, Li. Gosto de cruzes de plástico pretas! – sorriu simplesmente – E também de ver aquele ar de criança no seu rosto quando te dei a caixinha. E... deixa ver...
Ela corou, um tanto sem jeito. Mas ela e Zero sentiram o cheiro estranho ao mesmo tempo, e assim que ela olhou para onde fora a janela do quarto, seu parceiro adiantou-se e puxou a espada polida da cintura, atravessando a madeira apodrecida com ela e ouvindo um guincho rouco.
_ É, também me interesso em tirar a gente daqui. Vem Li! São Sauróides!
Zero voltou-se para a porta, conduzindo Melissa com um aceno, mas deteve-se na soleira e ergueu a pistola que trazia até então na cintura, disparando uma vez para a direita e uma à esquerda.
Dois Sauróides, um tipo de homem-lagarto subterrâneo que vivia em tribos, tombaram imediatamente para trás, atingidos entre os olhos. Zero correu para fora puxando Melissa pelo braço esquerdo e então viu que mais Sauróides se aproximavam pelos dois extremos do corredor, e as lanças rústicas de pedra que traziam estavam erguidas.
Zero imediatamente lançou-se sobre Melissa e de volta para dentro da casa, enquanto lanças vieram de todos os lados. Algumas fincaram-se ou quebraram-se contra as paredes, Zero caiu sobre Melissa e olhou nos olhos dela por um momento rápido.
Ela estava bem. Ele agira rápido. Girando para tornar a encarar o exterior da casa, ele ergueu a espada numa postura de guarda e estirou o braço e a jovem maga ouviu novamente dois estrondos de pólvora e mais baques surdos lá fora.
_ É nessas horas que eu queria ter umas sete pistolas! Li, a gente precisa de um feitiço de fogo ou então luz forte! Qualquer um!
Melissa sentou-se, vendo Zero encolher-se junto à parede enquanto mais lanças caíam lá dentro, e enquanto ele trocava o cartucho de munição vazio de sua pistola por um outro da cintura. Seu primeiro impulso foi o de começar a formar uma bola de fogo para assustar os Sauróides lá fora, exatamente como Zero dissera, mas ela voltou-se então para a janela onde Zero abatera o primeiro deles, e viu que havia mais dois ali, sibilando e agora erguendo seus olhos para ela.
Sem pensar no que estava fazendo, Melissa ergueu-se e agitou a mão para trás. Eles iriam atacar. Àquela distância, daquele ângulo, só precisavam de um bom arremesso para ter a ela e Zero.
“Não!”
Uma Bola de Fogo maior do que ela própria esperava, sem dúvida, formou-se em sua mão recuada e ela atacou, a abertura explodindo em chamas num impacto seco enquanto os dois Sauróides tombavam para trás fulminados. O som despertara a atenção de Zero, mas Melissa chamou assim mesmo.
_ Zero, por aqui! Acho que podemos sair pelos fundos!
Ele colocou-se de pé, olhando admirado para a abertura de bordas chamuscadas onde antes fora a janela, e seguiu Melissa que já pulava pelo beiral. Detendo-se um instante para apontar a pistola, Zero disparou na primeira forma esverdeada a surgir no umbral da porta e a fez tombar de costas, também, só então saindo pela janela. Um pouco aquecida, mas nada que ele não pudesse tolerar. E ele viu admirado os dois Sauróides carbonizados ainda fumegando no solo.
_ Bem passados...!
_ Anda, Zero, vem logo!
Os dois correram pelo caminho estreito daquele lado da casa, um tanto prensado entre as paredes da habitação e a parede natural de pedra da caverna. Mais um Sauróide surgiu no final do corredor, e Zero apontou a pistola por sobre o ombro esquerdo de Melissa, disparando novamente e tombando a criatura.
A estimativa de Melissa fora acertada; embora os Sauróides também pudessem usar aquele caminho para cercar os oponentes, eram bem menos numerosos ali. Assim que saíram dos fundos da casa, Zero e Melissa se viram diante da entrada principal do túnel por onde tinham entrado, e também puderam ver um grupo de três Sauróides se aproximando quase ao alcance de batalha.
Zero mais uma vez disparou, derrubando o lagarto mais à esquerda, e sua espada longa girou na mão direita para voltar seu gume para baixo.
O Sauróide investiu com a lança. Zero rebateu a ponta para o alto com o erguer da mão direita, e ficou em posição para perfurar a criatura no lugar onde o coração está em seres humanos, fazendo também o segundo Sauróide tombar, embora este ainda se debatesse.
O terceiro deles também ergueu sua lança com ambas as mãos, e Zero estava momentaneamente preso ao segundo monstro, mas Melissa uniu suas duas mãos de palmas abertas na direção do monstro, e um feitiço de fogo e impacto como o anterior atingiu o Sauróide no peito como uma bola de ferro, fazendo-o saltar para trás com uma marca chamuscada redonda enorme em seu tórax e cabeça, e Zero viu surpreso ao liberar sua espada que o último Sauróide parecia ter sido atingido por uma bala de canhão.
_ Melissa...?
_ Anda, Zero, tem mais deles chegando!
Mais dois Sauróides, agora mais distantes, arremessaram suas lanças na direção do casal. Uma delas zuniu próxima à cabeça de Zero, a outra se espatifou no solo aos seus pés, e ele instintivamente apontou a pistola para o último tiro, fazendo mais um dos monstros tombar de costas antes de voltar-se para a saída e correr, acompanhando Melissa lado a lado e comentando em voz alta:
_ Foi um feitiço muito legal aquele ali. Quer me ensinar?
_ Depois! Agora anda logo!
Zero guardou a pistola. Poderia trocar o cartucho vazio por outro completo, mas não tinha como saber se haviam mais Sauróides no caminho à frente, e se precisaria de sua espada. E então teve uma boa idéia para deixarem o problema para trás.
Melissa viu Zero retirar outro cartucho de munição de sua cintura e disse, num tom de reprovação:
_ Eu posso lidar com eles à distância por enquanto, Zero! Vamos precisar da sua espada...
_ Eu sei, Li, eu sei – ele voltou os olhos por um momento, enquanto os Sauróides mais adiantados começaram a surgir na curva lá atrás, e depois tornou a olhar para diante de si, vendo que o túnel se estreitava novamente mais adiante – Eu não vou recarregar agora; tô pensando num jeito de escapar! E vou precisar de você nessa.
Ela não entendeu muito bem, e eles apertaram o passo até chegar à outra curva para a esquerda, onde a passagem se estreitava. Ali, ela viu que Zero detivera-se por um momento, e estava agora colocando o cartucho de recarga entre o arco da passagem.
_ Zero, o que...
_ Vai andando, vai andando! Eu te alcanço já!
Melissa ficou indecisa, voltando-se para correr mas sem querer deixar o amigo para trás. Felizmente, Zero não demorou mais do que o necessário para que o cartucho de munição ficasse preso entre as rochas, e então correu ainda mais depressa na direção dela.
_ Tudo bem, Li, acho que agora já dá!
_ Dá? Dá pra fazer o quê?
_ Aquele seu feitiço de fogo, consegue acertar no meu cartucho com ele? Se a gente explodir o arco da passagem com ele...
Os olhos dela se iluminaram num sorriso, e Melissa voltou toda a sua atenção para o ponto onde vira Zero mexer. Não conseguia ver o cartucho propriamente, claro, visto que a caverna era mal iluminada e estava distante o bastante para que a munição parecesse invisível entre as rochas. No entanto, seu feitiço Bala de Canhão não precisava de um alvo tão claro; bastava que soubesse onde queria atingir.
Zero estava quase chegando até ela quando Melissa julgou que seria seguro usar sua magia, e voltou as duas mãos de palmas abertas na direção do ponto onde vira o amigo esconder o cartucho de munição.
Um grupo de pouco menos de dez Sauróides estava à beira de fazer a curva, lanças erguidas para um arremesso assim que os alvos estivessem visíveis, quando um estrondo alto os assustou e fez com que detivessem seu avanço, instintivamente agachando-se e empunhando as lanças defensivamente. E o teto da passagem desabou, obrigando os mais adiantados a recuar apressados e acotovelando-se sobre os de trás, pedras pesadas e poeira caindo por toda a parte num estrondo ainda maior do que o primeiro.
Havia vários Escavadores profissionais do lado de fora do Acesso Leste das Catacumbas quando o tremor baixo se fez ouvir. Desabamentos não eram muito comuns nos túneis que eles faziam nos últimos tempos; experientes em seu trabalho, dificilmente um de seus túneis caía por si só. Por isso mesmo, muitos olhares franzidos voltaram-se na direção da passagem ao ouvir aquele som, e mais ainda ao ouvir nitidamente passos apressados. Alguns dos mais previdentes, inclusive, ergueram espingardas de um só tiro e pistolas variadas para a abertura enquanto os passos se aproximavam.
E dois vultos saíram correndo, acompanhados de uma fina nuvem de pó. Algumas armas foram engatilhadas, e o som de metal sendo armado fez um dos fugitivos erguer os braços e agita-los, gritando:
_ Abaixem essas armas! Abaixem as armas eu disse, mineiros! Vão atirar? Não fugimos daqueles Sauróides pra morrer por causa de vocês, desgraçados!
E todas as armas foram erguidas ou guardadas, com um suspiro de alívio e resignação. Zero. O filho maluco do Seu Dirceu. Perigoso, sim, mas de uma maneira engraçada; nada para se preocuparem muito, ao menos.
_ Zero? – o veterano Osvaldo Silva aproximou-se do rapaz e de sua parceira Melissa, a expressão ainda carregada, mas cheia de alívio enquanto guardava sua arma – O que pensa que está fazendo, nos dando um susto desses, menino? Como se o pessoal daqui já não tivesse motivos suficientes pra querer atirar em você...
Melissa, ainda incapaz de falar enquanto ofegava, olhou reprovativamente para o velho Escavador. Zero não era o único caso de senso de humor ali; a maioria deles, na verdade, era uma grande ‘irmandade’, onde cada um que pudesse caçoaria mais do outro se possível. Mas ela e seu amigo haviam acabado de sair de uma situação de risco, e isso devia ser evidente em suas aparências; aquilo não era hora de piadas.
_ Tio Ovo... – Melissa sentiu um momento fugaz de vingança dar-lhe um sorriso, enquanto via o velho Escavador franzir o rosto com o apelido de que não gostava outra vez sendo usado por Zero – O túnel leste... Fechado... Sauróides com lanças naquele acesso... Manda lacrarem... Depressa!
_ Sauróides? – Osvaldo olhou para Zero e Melissa, e a moça quase pôde ouvir seus pensamentos; seria outra piada de Zero? Não; eles sabiam que ela não conseguia simular tão bem, e tanto ela quanto o rapaz pareciam positivamente ter acabado de escapar por pouco de uma situação difícil – Tem certeza disso, Zero? Nós já tínhamos livrado aquela área, e não achamos mais...
_ Que bagunça é essa aqui? – outra voz se fez ouvir, e Melissa voltou seu olhar para o Escavador que se aproximava. Roque Batista era um dos mais antigos Escavadores da Cidade Sucata, e sua longa experiência e coragem em serviço lhe haviam conferido uma posição importante entre eles, e sua palavra era obedecida e respeitada. Mas sua personalidade e modos sempre a haviam deixado desconfiada, e ela tivera uma péssima impressão dos Escavadores a princípio, visto que ele fora o Encarregado a quem ela tivera de se apresentar quando chegara ali, revelando seu desejo de aprendizado. Sua mãe estava certa, outra vez, ela pensou ao comparar seu amigo Zero e o chefe: em qualquer lugar que fosse, em qualquer ocupação que existisse no mundo, sempre haveria boas e más pessoas.
O Encarregado aproximou-se de Zero e Melissa, seu olhar severo sobre o rapaz empoeirado e sua companheira, e Osvaldo tomou a frente, tentando amenizar a situação.
_ O Zero... Ele e a Melissa acabaram de voltar do Acesso Leste, e dizem que tem Sauróides lá, Batista.
_ Sauróides? – o Encarregado franziu ainda mais a fronte, olhando para Zero como quem olha para lixo esparramado na rua – Que besteira é essa, garoto?
_ Não é piada dessa vez... chefe – Zero olhou para Batista, e Melissa sabia o quanto ele detestava ser gentil e servil com o superior; só uma situação séria como aquela faria com que ele agisse com seriedade – Eu e a Mel bloqueamos a passagem deles por enquanto, e pegamos alguns deles. Aquelas coisas devem se dar por satisfeitas com a carne dos próprios mortos por enquanto, mas quando terminar, eles vão tentar abrir o bloqueio. E vão conseguir, se tiver mais deles nos níveis mais baixos. Escuta, eu não tô pedindo nada demais; é só deixar uns vigias de olho no Acesso Leste por alguns dias, sem compromisso, e se...
_ Não preciso que me ensinem a fazer o meu trabalho, garoto – Batista retrucou friamente – Muito obrigado.
_ É isso mesmo, Zero, ponha-se no seu lugar!
Melissa impacientou-se, contendo a custo a irritação. Vander não era, de forma alguma, desagradável aos olhos dela. Alto, de cabelos bem cuidados e fortalecido pelo trabalho nas escavações, ele seria muito bonito em qualquer outra situação, sem sombra de dúvida, mas o fato de estar sempre contrário a Zero a deixava irritada com ele. O fato de ser um eterno puxa-saco do Encarregado também era outra razão.
_ Nossa, Vander, você tava aí? Eu nem tinha te visto! – ironizou Zero – Deixa eu continuar sem te ver, vai; tava tão legal! E, Seu Batista, isso é sério! Se aquelas coisas resolverem colocar a gente no cardápio deles, vai ficar difícil lutar. Eu só tô pedindo...
_ Pedindo pra desistirmos da área de escavação que mais tem rendido Jóias Dragão de Fogo até aqui – interrompeu Vander de novo – E isso depois, pelo que entendi, de ter nos atrapalhado o suficiente bloqueando o caminho.
_ Ah, desculpa, Vander – Zero tornou a ironizar, e Melissa ficou preocupada; a voz dele estava ficando mais alta, o que não era um bom sinal – Se eu soubesse que você tinha essa vocação pra tira-gosto de lagarto, eu deixava o caminho aberto pra você ir lá. Seu Batista, não é preciso acreditar, só manda um grupo de inspeção bem armado pra o Acesso Leste, então! Se quiser garantia, eu vou junto pra mostrar onde foi que...
_ Não é preciso mandar um grupo de inspeção pra fazer um trabalho que já foi feito, garoto – interrompeu novamente o Encarregado, erguendo a mão para deter o rapaz – Não é verdade, Vander?
 Zero e Melissa se voltaram para o outro então, começando a compreender o que estava acontecendo.
_ Claro que sim, senhor – Vander encarou Zero como se o estivesse vendo por cima – Eu e meu grupo de segurança percorremos o Acesso Leste de cabo a rabo, e nos certificamos de que não há nenhuma toca de monstro sobrando; já lidamos com o que havia por lá quando escavamos o bairro fantasma.
_ Se vocês fizeram esse trabalho com o mesmo cuidado que sua mãe fez seu cérebro, Vandão – Zero tornou a retrucar – tá tudo explicado.
Melissa abafou o riso com as mãos, e viu o grupo de Escavadores por toda a volta disfarçar mais ou menos da mesma maneira, enquanto o rosto de Vander ficava vermelho de vergonha e de raiva e o Encarregado os interrompeu.
_ Já chega de ficar provocando, Zero. Meu grupo de segurança fez a vistoria; devo poder confiar neles, ou não?
_ Claro que pode, senhor – Vander apoiou, aquele sorriso superior novamente dirigido a Zero – Não vai precisar gastar mais dinheiro em buscas à toa, só porque alguém acha que viu alguma coisa lá. Afinal, eu e meu grupo de segurança estamos aqui pra fazer isso pelo senhor.
_ Sabe, Vander, três coisas que têm demais no mundo, e eu não gosto, são baratas, puxa-sacos e ignorância, e você é uma mistura desagradável dos três – a voz dele ficou mais alta, e Melissa instintivamente se aproximou mais de Zero, e também mais dois outros Escavadores. Era estranho que Vander, que era quem mais deveria estar alerta, estivesse alheio à alteração no humor do outro; na verdade, toda a atenção dele estava voltada para algo que não vira antes.
_ E, o que seria isso? – ele adiantou-se, erguendo o pequeno crucifixo negro no pescoço de Zero – Tirando artefatos lá debaixo de novo, Zero! E sem permissão! Acho que agora entendi direito; eliminando rastros, hein? Pensou nisso sozinho, ou teve ajuda? Seria muito fácil pra a sua amiguinha maga fechar o túnel com a magia dela, hein?
Melissa deteve-se, chocada e indignada com a acusação, mas ela mal teve tempo para sentir-se assim, porque Zero começou a rir. Ria, ria e não parava mais, a ponto de ela e os outros Escavadores, se aproximando para conte-lo, se afastassem para olhar para ele com estranheza. Mesmo Vander, que o estivera provocando, afastou-se um passo olhando para Zero com um misto de confusão e irritação, enquanto o outro debruçou-se sobre seu ombro e comentou, ainda rindo:
_ Vander, você é muito trouxa...!
Sem aviso, seu joelho esquerdo atingiu Vander entre as pernas abertas com tanta força que o outro chegou a erguer-se do chão.
Antes que alguém tivesse tempo de detê-lo, Zero agarrou a nuca de Vander e o puxou para frente, achatando o nariz do outro contra seu punho.
Os outros tinham apenas começado a se mover quando Zero passou o pé por trás das pernas de Vander e puxou, derrubando o outro de costas e de cabeça no chão. E ele já pisava no pescoço do outro, a mão direita apertando suas bochechas para manter sua boca aberta enquanto a esquerda puxava a língua para fora.
_ Principalmente por me provocar!
Os outros estavam sobre ele e tentavam puxa-lo, mas ao fazer isso eles também esticavam demais a língua de Vander, que se debatia sem conseguir respirar direito. Melissa agarrou os ombros de Zero, e viu que os olhos dele faiscavam na direção do caído Vander, sem parecer em nada com o amigo que ela conhecia.
_ Eu até aceito que riam de mim; até ajudo! Mas falar besteira de uma amiga minha é coisa que eu não admito! Pede desculpas agora, enquanto ainda tem língua pra isso, safado!
Pedidos de Melissa, dos Escavadores mais velhos ao redor e mesmo as ordens vociferadas de Batista não faziam qualquer diferença para Zero, que ninguém conseguia separar de Vander. Ele podia ser muito difícil de se irritar, mas uma vez assim, era ainda mais difícil controla-lo.
_ Zero, já chega! Tá tudo bem, eu não me importei...
_ Zero, solta ele, garoto! Vai piorar a situação...
_ Não está me ouvindo? Já mandei você soltar o Vander, menino...!
_ Solte ele, Zero.
Todos voltaram-se para ver quem falara, e isso incluía Zero. Seu Dirceu, o pai dele, estava calmamente à parte da confusão, parado a uma certa distância apenas observando e apoiado no bastão que usava como bengala. Os demais começaram a se afastar de Zero, apenas Melissa ainda com ele. Olhando para o pai, o rosto ainda contrariado, o rapaz soltou a língua de Vander e sua boca, mas seu pé direito continuava firme sobre o pescoço do outro.
_ Ele ainda não pediu desculpas pra a Melissa.
_ Achei que tinha dito a você pra soltá-lo, Zero.
A voz de Seu Dirceu continuava a mesma da frase anterior, mas seu rosto sorridente mudara para um semblante um pouco mais sério. Zero então tirou seu pé do pescoço de Vander, embora estivesse emburrado ao limpar os dedos que haviam segurado a língua do outro na camisa dele, e depois, quando foi para junto do pai. E Roque Batista aproveitou o silêncio para se queixar.
_ Seu filho causou problemas mais uma vez, Seu Dirceu! Da última vez, o senhor me prometeu...
_ Sim, sim, eu sei – Seu Dirceu interrompeu o outro, acenando com a mão – Pedi a meu filho para descer até o bairro na área do Acesso Leste porque precisava de algo de lá; ao que parece, ele voltou a aprontar. O que foi dessa vez, Zero?
_ Ele disse que encontrou Sauróides lá embaixo Seu Dirceu – comentou Osvaldo, ao que Roque torceu o nariz.
_ Besteira! Vander e a equipe dele desceram lá, vasculharam tudo o que havia para se ver e não encontraram mais monstros depois que o Grupo de Limpeza completou...
_ É claro, é claro – outra vez Seu Dirceu cortou a reclamação de Batista – Sem dúvida nenhuma, o senhor tem razão, Encarregado; não faz sentido perder tempo e recursos de escavação com um rumor tão infundado.
Melissa olhou para Seu Dirceu com admiração, sem querer acreditar no que estava ouvindo, e viu Zero olhar para o pai da mesma forma. E o velho Escavador prosseguiu, calmo como sempre:
_ Eu tenho certeza de que todos os Escavadores aqui vão aceitar, sem discussão, abrir o acesso que o tolo do meu filho selou por causa dos Sauróides que não estão lá, e voltar a escavar no bairro perdido do Acesso Leste sem ter qualquer medo de Sauróides, ou qualquer outro monstro que por acaso também não esteja lá. Seria tolice, não é mesmo? Afinal, se Vander disse que verificou...!
_ Se não se importa, Seu Dirceu, sou eu quem tem que dar essa ordem! – bufou Batista, mas perdera o sentido do que Seu Dirceu estava dizendo. Ao contrário dos demais Escavadores.
_ Isperaí um pouquinho! – bradou do outro lado um dos Escavadores, Smite, com o sotaque carregado dos nativos do norte – Tá querendo dizer que nóis vai descer lá com os bicho sem ninguém ir ver isso aí? É ruim, hein? Nóis é pago pra cavar e tirar as coisa de lá, não pra ficar lutando co’s lagarto, não!
_ Ei, é verdade! – Osvaldo apoiou – Se Zero estiver mesmo certo, e tiverem Sauróides lá embaixo, o primeiro grupo Escavador que descer sem apoio vai ser massacrado!
_ E pode ser que não tenham só Sauróides lá embaixo! – gritou um terceiro. E em segundos, uma verdadeira balbúrdia de Escavadores falando ao mesmo tempo havia cercado Batista e deixado-o olhando para todos os lados, fumegando e sem capacidade de responder a todos ao mesmo tempo. Seu Dirceu sorriu, deu as costas e disse:
_ Bem, eu sei que vai tomar a atitude certa, Seu Batista. Se me dá licença, eu vou até ali cumprir o que tinha prometido, e vou disciplinar esse meu filho briguento. Zero, Melissa, vamos?
Roque Batista olhou furioso para o velho Dirceu, mas não havia nada a ser feito. E ele teve que lidar com o grupo confuso formado pelos inúmeros Escavadores, que mais e mais aumentavam em número e em balbúrdia, com Vander ainda atordoado e dolorido sentado no chão, esfregando as partes doloridas do corpo.
Melissa estava achando a volta para casa muito estranha. O velho Dirceu estava calado, em seu passo lento e tranqüilo, e Zero também estava silencioso à esquerda dela, o que era muito estranho vindo dele. Seu amigo estava de rosto baixo, parecendo envergonhado, e parecia estar alheio a tudo. Incapaz de aguardar mais, quando chegaram ao sobrado onde moravam pai e filho, e ao lado da casa onde ela estava hospedada, Melissa indagou:
_ Vai mesmo dar uma bronca no Zero, Seu Dirceu?
O velho Escavador abriu um sorriso leve, seguindo adiante sem responder. Passou pela porta seguido do filho, e Melissa foi logo atrás, sem entender por quê Zero não estava tentando se defender. Mas ela mesma não desistiria daquele jeito.
_ Ele só começou a bater no Vander porque ele provocou, Seu Dirceu. A gente estava tentando explicar pro Encarregado que...
_ Zero, tem um pacote embrulhado numa lona no armário de metal lá nos fundos. Pode traze-lo até aqui? E, veja se toma cuidado; aquela coisa é pesada.
_ Tá... Claro, pai.
Zero foi até os fundos sem qualquer outro comentário, e Melissa ficou olhando sem compreender, enquanto Seu Dirceu perguntou:
_ Então, menina maga, o que foi que meu filho encontrou lá embaixo pra te dar de presente? Com certeza, algo melhor do que aquela cruz que está trazendo no pescoço.
_ Hã? – ela estava certa de que a caixa de música estava bem oculta em sua bolsa de cintura; ninguém fizera qualquer comentário quando ela e Zero haviam saído do túnel! E Seu Dirceu olhou para ela com um ar vazio, parecendo entediado.
_ Eu conheço meu filho, menina. Ele nunca escolheria um presente pra si mesmo sem ter dado nada para quem estava com ele. Além do mais – suspirou – ele tem falado do seu aniversário na última semana, e que você devia ficar surpresa com a coisa que ele tinha encontrado lá embaixo, mas nem pra mim o lazarento disse o que era. Acho que devia ter sido um pai mais severo. Ande! Me mostre! Só estou curioso.
Ela continuava confusa com a estranheza do pedido; achava que devia explicar o comportamento de Zero, e porquê ele estava brigando, mas o velho Dirceu não parecia preocupado com aquilo. Abrindo a bolsa, ela retirou a caixa de música e a abriu, e a música dos sinos se fez presente de novo. Os olhos do velho Escavador se iluminaram com um sorriso gentil ao ouvir a melodia, e Melissa quase sem perceber colocou uma das bailarinas na posição, procurando o lugar certo até que ela começasse a rodopiar sobre o espelho.
_ Agora entendo. Heh, esse guri puxou mesmo à mãe; eu nunca tive jeito pra dar presentes. Outra coisa que ele puxou – Dirceu olhou pela porta onde o filho saíra – foi o gênio dela. Célia sempre foi assim como ele, uma verdadeira força da natureza por onde passava. E, também, muito perigosa quando se irritava. Podia me fazer um favor, menina, e não comentar nada sobre o gênio dele quando saírem? Zero fica envergonhado quando os amigos o vêem assim, e me parece que você é a melhor amiga dele.
Melissa então sorriu; Dirceu só estava tomando conta do filho. Zero sem dúvida estava de orelhas ardendo enquanto buscava o que o pai mandara. Ela perguntou:
_ Então, o senhor não vai castigar mesmo o Zero, vai?
_ Bem, eu não diria isso... – ele olhou pela porta, vendo o filho chegando com o pacote – Essa coisa que eu o mandei pegar tem a ver com o ‘castigo’. Zero, encontrou o que eu pedi?
_ Sim senhor.
Retirou do bolso a Jóia Dragão de Fogo que encontrara um segundo antes do desabamento da parede, e viu o pai sorrir com aprovação.
_ Bom! O tamanho dela é melhor do que eu esperava; deve servir muito bem. Melissa, está com disposição para uma viagem?
_ Viagem? – ela olhou para o velho Escavador sem entender – Pra onde?
_ As Terras Sombrias de Fronteira, a oeste – Dirceu respondeu, parecendo um pouco mais preocupado – Essa encomenda veio de lá via pombo correio há três semanas, da Rainha Christabel em pessoa. Sem poder viajar pra lá pessoalmente, visto que não vou ser muito útil se tivermos que correr, a melhor pessoa em quem posso confiar pra ajustar esse equipamento e chegar até lá é meu filho Zero, mas uma ajuda confiável nunca seria demais, e a Unicórnio dele deve poder levar mais uma pessoa.
_ A Rainha Christabel? – Melissa pareceu mais preocupada ao ouvir o nome de quem teria que encontrar do que para onde estava indo – ‘Aquela que mata aos que ama’?
_ É, também conhecemos a reputação dela por aqui, menina – Seu Dirceu replicou – No entanto, rainha é rainha, e não é muito inteligente dizer ‘não’ pra uma delas; não tenho ninguém, como disse, que entenda tanto do que criamos aqui melhor do que Zero, a não ser eu mesmo. E a pessoa também tem que poder se defender. Outra vez, quem melhor do que o meu filho aventureiro, que é o único Escavador que se arrisca a descer onde ainda podem ter monstros?
_ Mas, pai... – Zero olhou em dúvida para Melissa – Será que é mesmo uma boa levar a Mel? As Terras Sombrias não são nada seguras, e... bom, eu não vou querer que ela se machuque, por lá.
_ Zero...!
Melissa ia protestar contra esse super protecionismo de seu amigo. Era verdade que ela não escolheria uma visita às Terras Sombrias como parte de sua viagem de aprendizado, mas estava totalmente fora de cogitação ela aceitar ficar para trás mantendo-se num local menos perigoso e deixando que ele fosse sozinho. Antes de seu protesto, no entanto, Seu Dirceu pegou a Jóia Dragão de Fogo sobre a mesa e atirou em Zero, acertando-o na cabeça.
_ Moleque idiota, como pode desrespeitar sua amiga dessa forma? Quer morrer?
_ Hein?
_ Pretende envergonha-la, dizendo que ela é indefesa demais pra ir? O risco é por conta dela, garoto! Se ela quiser aceita-lo, você não tem nada que se opor! É um insulto à coragem dela! Melissa – e então Seu Dirceu se voltou para a maga loira, com o rosto sério – não vou nem tentar florear a situação. É como Zero disse; o único lugar mais perigoso do que as Terras Sombrias na Fronteira, onde a Rainha Christabel governa, são as terras Além da Fronteira, e não pense que estou falando apenas porque há monstros lá. Vocês irão como prestadores de serviço pessoais à rainha, e a fama dela faz com que ninguém que esteja do seu lado esteja seguro, dentro ou fora das muralhas da Fortaleza de Melk. Terão que estar alertas o tempo todo... e pode não ser o bastante.
_ Não é nada animador, Seu Dirceu – ela se queixou.
_ Não é pra ser, mesmo – o velho Escavador retrucou – Entenda, não há vergonha nenhuma em não ir, Melissa. E nem eu quero seus pais me dizendo depois que mandei a filha deles sem noção de para onde ia; as Terras Sombrias são perigosas, a Fortaleza de Melk é perigosa e, até onde se sabe, a própria Rainha Christabel é perigosa. Eu vou mandar Zero de qualquer forma, no entanto, e já que decidiu estudar e aprender com a gente, tenho que te dar a opção de acompanhar ele. E então, o que diz?
Ela olhou para Zero; quase podia ler os pensamentos dele, mesmo que nunca o tivesse aprendido com magia. Ele queria que ela ficasse. Sabia que seria arriscado demais, e preferia correr o risco sozinho. Mas ela também sabia que Seu Dirceu tinha razão; ela era a parceira de Zero desde que ele a havia aceito como tal. Mesmo que seu instinto primário fosse recusar a chance, ela se sentiria envergonhada de deixa-lo ir sozinho às Terras Sombrias. Se a situação era mesmo tão arriscada, ele precisaria de toda a ajuda que ela pudesse lhe dar.
_ E quando nós devemos partir, Seu Dirceu?
Zero baixou os olhos, um pouco pesaroso, mas Seu Dirceu sorriu. O filho julgara a moça corretamente, como sempre. Maga, sim, mas uma boa companheira, ela nunca abandonaria um amigo, ainda que quisesse muito. Podia confiar nela.
_ Vou terminar de empacotar algumas coisas de que podem precisar durante a viagem; pra que cheguem lá num horário em que não tenham que tirar Sua Majestade da cama, é melhor que saiam pouco antes da alvorada, lá pelas cinco da manhã.
_ Vamos levar mais de um dia pra chegar lá, pai! – bronqueou Zero.
_ Por isso mesmo, tratem de dormir em algum vilarejo que encontrarem quando cair a noite de amanhã. Vocês não vão querer passar a noite nos Ermos, ainda mais quando estiverem próximos às Terras Sombrias.
_ Mel... – Zero tinha um tom preocupado em sua voz – Você tem certeza de que quer fazer isso? Eu não vou achar nada ruim se você não quiser ir, não precisa se sentir obrigada.
_ Claro que preciso – ela deu um sorriso um pouco contrafeito para ele, mas sincero – Que droga de irmã sou eu deixando meu irmãozão ir sozinho? É melhor Christabel se cuidar e tentar nenhuma bobagem pro seu lado, ou vai ter que se ver comigo!

Capítulo 03

III – Rainha dos Horizontes Sombrios


Christabel dormia. No passado, nos primeiros dias após a posse dela, alguns assassinos haviam tentado em intervalos aleatórios ataca-la durante o sono... e ninguém nunca mais os vira. Tentativas mais sutis, como veneno, também tinham sido usadas, e também sem qualquer resultado. Então, por menos que a idéia agradasse, e também levando em conta que o reforço dado por ela nos ataques vindos de Além da Fronteira, os Ocidentais haviam aceitado a rainha. Ao menos, até que algo ou alguém conseguisse livra-los dela mais uma vez.
A Rainha dormia. Christabel exibia uma aparência impenetrável, durante todas as horas do dia, durante todos os dias da semana. Mesmo durante o sono, sua expressão era impassível e não parecia trair qualquer sentimento.
Sua mente, no entanto, por poderosa e determinada que fosse, ainda era humana. Ela não era um construto; logo, ainda que mesmo ela não gostasse de admitir, sentimentos antigos a assombravam durante seu sono.
Outra vez, estava com seus pais numa viagem. Naquela época, os transportes de motor a vapor ainda não estavam aperfeiçoados, e animais de tração levavam a carruagem enquanto eles voltavam. Seu pai, Kane, era o mais poderoso Mago Vermelho que já viera às Fronteiras, hábil tanto em poder de ataque quanto de defesa por magia, e ainda um mestre espadachim. Sua mãe, Reiko, era uma feiticeira ela própria, habilidosa criadora de armas imbuídas com poder de magia, especialmente poderosa com eletricidade. Ele era sério e um tanto exigente, mas também atencioso e gentil, sempre encontrando tempo para a filha em meio aos deveres de regente e comandante da Fortaleza de Melk; ela fora doce e meiga, parecendo incapaz de se zangar mesmo quando estavam sofrendo um dos inúmeros ataques.
Exatamente por isso, eles não tinham o costume de levar Christabel em viagens para fora da fortaleza. Estavam com ela naquele dia, no entanto, pois haviam ido para a área protegida, nos Ermos próximos à Fronteira das Terras Sombrias. Outra vez, Christabel tinha oito anos de idade, e olhara para o céu no exterior da carruagem. Nunca gostara muito dos céus escuros de sua terra natal, que pareciam ainda mais escuros do que em qualquer outro lugar, mesmo à noite.
Alguém dissera algo à sua direita, e embora ela não lembrasse o que era, o tom de voz gentil e carinhoso fazia com que lembrasse que era sua mãe. A menina olhou para o rosto dela, e lembrava claramente da mão carinhosa acariciando seus cabelos em meio ao sorriso. E outra pessoa falara, à sua frente, a voz forte de um soldado. Seu pai. Ela não lembrava bem do que fora dito, mas tinha certeza de que se sentira mais segura. Se seu pai dissera, então ninguém poderia contradizer aquela sensação.
Tudo ficava ainda mais obscuro, então. Ela lembrava bem de uma sensação como música, uma música terrível e bela, transmitindo uma impressão de finalidade. Lembrava que, de algum modo, as montarias estavam mortas no chão, e a carruagem tombada. Ela olhara para diante, e quatro ou cinco vultos destacavam-se no horizonte à sua frente, e de algum modo Christabel soube que nunca passaria por ali. Vultos altos, envoltos em negro, lentamente desembainhando espadas.
E viu seu pai erguer-se com dificuldade, também. O chapéu dele estava amassado, seus olhos duros e a mão direita firme no punho da espada, enquanto ele se firmava e se punha de pé. Lembrava-se da mãe a seu lado, apertando-a junto a si. As vestes brancas dela estavam manchadas de poeira negra e sangue, e então... Mesmo o olhar dela parecia endurecido, encarando os vultos que se aproximavam galopando; ela nunca vira sua mãe daquele jeito, e isso a assustava, a segurança transmitida ainda há pouco esquecida por completo. Ela lembrava de que algo terrível ia acontecer, mas de algum modo sabia que não teria como avisar os pais, mas mesmo assim tentou. E tudo o mais passou.
O sonho evoluiu então, e embora algo de si soubesse que estava sonhando e que já vira aquela mesma seqüência várias vezes, Christabel de repente soube que algo novo estava acontecendo. Agora ela estava sozinha, no que poderia ser o pátio da Fortaleza de Melk, mas terrivelmente arruinada e deserta.
Não sozinha, então. Vultos estavam por toda a volta, sombrios e com aparência humana. Mesmo assim, diferentes. Após o primeiro instante, seu espanto passou. Aquilo não era nada diferente do que ela via todos os dias; cercada por inimigos, em seu próprio lar. O que havia de novo?
Eles começaram a se aproximar então, em movimentos tão discretos que era como se tentassem disfarçar suas intenções, mas Christabel sabia que eles estavam tentando fazer mal a ela. Ergueu sua mão direita, como sempre fazia, prenunciando uma de suas magias.
Nada aconteceu, então. A rainha olhou assustada enquanto os vultos continuavam a se aproximar, e cada vez que ela desviava a atenção de um grupo, outro se aproximava mais depressa. Ela então voltava sua atenção para os vultos atrás de si, para vê-los a menos de cinco passos de si, e sabia mesmo sem ver que os que estavam à sua frente avançavam. Voltou seus olhos para eles, e embora não tivesse uma visão clara de seus rostos, sabia que eram hostis.
Alguém agarrou seus braços por trás, e de repente ela estava indefesa. E então ela sentiu medo, como não sentia desde o dia da morte dos pais. Seus poderes não estavam funcionando, e os vultos à sua frente, agora não mais ocultando sua aproximação, tinham tochas, bastões e foices erguidos em sua direção, como naquele dia em que ela fora expulsa de Melk, anos antes. Desta vez, no entanto, ela sabia que eles não correriam o risco de deixa-la voltar fortalecida, como um dia acontecera, e foi inevitável que se debatesse.
Um som de estrondo forte, como uma explosão, se fez ouvir à sua direita, e uma luz forte que ela via apenas com o canto de sua visão pareceu ferir e espantar os vultos, que deixaram de se aproximar dela.
Christabel ouviu um ronco estranho; não parecia qualquer animal que conhecesse. Voltou-se para a luz, de onde vinha o som, e viu um outro vulto se destacando de dentro dela; um cavaleiro, montado num garanhão de ferro, apontando sua espada longa na direção dos vultos sombrios diante dela, batendo os pés nos flancos do animal para que este atacasse, numa carga contra os seus pretensos agressores, que fugiram diante da aparição.
Algo estava errado com ela, a rainha percebeu. Seu autocontrole não estava funcionando. Sempre capaz de se conter em qualquer situação desde o dia em que seus pais tinham morrido, Christabel estava trêmula, incapaz de conter a sensação de medo que deixava suas pernas pouco confiáveis e o alívio que aquela figura desconhecida lhe trazia, agora voltando e desmontando do garanhão de ferro, ainda não bem definido na luz que emanava dele, mas que ela sabia estar sorrindo, de algum modo, ao estender-lhe a mão.
E Christabel lançou-se nos braços dele, soluçando. Estava segura de novo, como não se lembrava de estar já fazia tempo demais. Ele estava sussurrando alguma coisa que ela não conseguia entender, mas que lhe transmitia um conforto enorme, sua mão direita afagando os cabelos dela. Era estranho, mas ela não estava sentindo qualquer reserva em baixar sua guarda daquela forma; não estava errado sentir-se assim perto dele. E ela podia até mesmo sentir o cheiro de terra e poeira que vinha dele, como o cheiro do vento que precede a chuva, como se carregasse terra molhada.
Finalmente, a rainha despertou. Sentou-se na cama, olhando ao redor, terrivelmente desconfiada. A primeira coisa que fez foi voltar seus olhos hostis para a própria mão direita, e depois de um instante conseguiu relaxar melhor; ainda podia sentir seu poder, sua magia. Fosse o que fosse que ocorrera com ela naquele sonho tolo, não era real.
Ou... ainda não era real? Christabel olhou em volta, certificando-se de que estava sozinha, antes de permitir-se agarrar seus próprios braços, e sentindo que algo do tremor durante o sonho persistia. Sua afinidade com a magia lhe concedera, quisesse ou não, o dom da clarividência. Como resultado, o futuro não era claro para ela, mesmo quando se intrometia em seus sonhos como agora. Contrariada, sabendo que as névoas restantes do sono persistiriam em seus pensamentos e os embotariam enquanto não se movesse, ela levantou da cama, jogou sobre si mesma um casaco e foi para a varanda de sua torre.
Na sacada, a rainha contemplou os horizontes escuros das Terras Sombrias, visíveis por toda a volta. Expor-se daquela forma naquele horário era normalmente muito perigoso; nunca se sabia que espécie de inimigo estava alerta, aguardando tal tolice para atacar num momento de descuido, mas Christabel sabia que precisava do ar frio da noite para pensar melhor no que lhe acontecera. Além do que, com a proteção que lançara sobre os céus do castelo e a Fissura carbonizada ainda aberta desde a batalha na noite anterior, ela sabia que só precisava manter a atenção mais aguda ao que estava dentro das próprias muralhas, para que não fosse morta por algum de seus muitos inimigos ali dentro.
A primeira parte de seu sonho fora, sem dúvida, sua pena novamente revisada. Nunca poder alterar, sempre ter que rever o momento em que sua vida mudara. Aquilo, ela sentia que merecia. Poderia ter salvo os pais... mas não o fizera.
A segunda parte, no entanto, era algo totalmente novo e diferente. Se... e ela estava apenas considerando a ‘possibilidade’ do evento... Se os presságios tivessem algum fundo de razão, ela perderia seus poderes em breve. Estaria a mercê, então, daqueles que a detestavam, mais uma vez... e, se ainda pudesse acreditar nos presságios, eles não a deixariam escapar novamente.
Os olhos da rainha se ergueram, encontrando os horizontes sombrios à distância, como se de lá pudesse ter alguma resposta. Por isso, talvez, e por seu estado abalado de espírito, ela não notou o vulto escondido pouco à sua esquerda e mais abaixo no pátio, observando-a satisfeito. Quase fazia pena não ter trazido uma atiradeira naquela noite; facilitaria muito seu trabalho, se Christabel morresse naquela noite por uma flecha perdida, ainda mais quando nem seus sentidos e magia protetora pareciam cuidar dela.
Estava funcionando. E estaria terminado em breve.

Capítulo 04

IV – Dois Estranhos Numa Terra Estranha



O céu estava escuro; parecia que cairia uma tempestade, mas na verdade, era o entardecer nas Terras Sombrias, o céu dividido entre tons avermelhados e escuros, enquanto Zero e Melissa se aproximavam mais e mais da Fortaleza de Melk.
_ Tamos quase lá, Li. Agora não falta muito.
_ Sei, sei. Você tá dizendo isso desde o começo do dia, Zero – queixou-se ela – Quantas vezes você já esteve em Melk, afinal?
_ Duas, com o meu pai – ele voltou-se para frente, conduzindo sua Unicórnio pela estrada irregular – Mas isso foi quando eu era criança, antes de melhorarem o motor a vapor. Também foi antes de eu aprender a pilotar e antes de ganhar essa moto.
_ Eu confiaria mais num cavalo, Zero – Melissa reclamou de novo – Eles conseguem encontrar o próprio caminho no escuro.
_ Ué, eu também! – Zero comentou com simplicidade – A Unicórnio enxerga o mesmo tanto que eu; e o que é melhor, ela não suja o chão, não precisa de comida, não morre...
_ Tá, tá bom! – ela se preocupou – Só vire os olhos pra frente e continue prestando atenção no caminho, certo? Eu quero chegar viva em Melk, se não se importa.
Zero riu, voltando a dar atenção à estrada. Sabia que Melissa não estava muito à vontade, andando numa das primeiras motocicletas a vapor, a Unicórnio, que Zero recebera do supervisor da Cidade Avançada por ter salvo seu filho havia pouco mais de um ano, e enquanto seguiam resolveu falar do lugar para onde estavam indo, para que sua companheira se distraísse.
_ Ouvi falar que a fortaleza tem esse nome por causa de um antigo guerreiro que tomava conta dela, o espadachim Melk, que viveu aí há quase cem anos. Eles fazem a principal força de defesa contra o que vem das terras Além das Fronteiras; entre duas cordilheiras cerradas e escarpadas, a única forma de passar sem ter que dar uma volta enorme e fora do território das Terras Sombrias é a passagem Penhasco, que é bloqueada pela fortaleza. Por isso mesmo, não é nada raro criaturas do lado de lá atacarem pra tentar forçar a passagem.
_ O povo daqui tem uma existência bem triste, pelo que eu soube – Melissa comentou com a voz baixa, quase lamentosa – Mantendo barreiras pra um lado, lutando todos os dias por suas vidas, não é de admirar se quiserem partir.
_ Mas não vão, Li, aí é que tá – Zero respondeu, começando a voltar sua cabeça na direção dela de novo apenas para ser repreendido e rir, e Melissa bateu nas costas dele quando viu os ombros do outro se sacudindo com o riso – Aiai! Bom, como eu dizia, eles são considerados os melhores guerreiros do mundo, justamente por terem tamanha experiência de combate, e isso é aquele tipo de coisa capaz de tornar uma região orgulhosa; os Ocidentais da Fronteira são teimosos pra caramba, e nunca se entregam. Dizem que se você morar mais de três anos em Melk, é considerado um igual. E até aí, não se quer mais deixar os amigos pra trás. Claro, isso presumindo que você sobreviva por três anos nesse lugar...
_ Você não está fazendo muito pela minha disposição falando isso antes de sequer chegarmos, Zero – Melissa retrucou com o ar vazio de seu rosto oculto no capacete – Me faça um favor; se isso é tudo o que pode me contar de Melk, guarde o resto pra quando estivermos saindo, depois que tiver terminado sua missão, tá bom?
Outra vez ele riu, e ela tratou de segurar-se mais firme em sua cintura. Não tinham tido muitos problemas para chegar até ali, e mesmo Melissa precisava reconhecer que o veículo de aparência estranha de seu amigo era rápido, e dispensava o descanso demorado que os cavalos convencionais pediam. Claro, ela ainda se sentia nervosa por estar montada sobre uma máquina com uma caldeira de vapor de tamanho considerável no tanque entre as pernas de Zero, mas admitia que ele era um bom piloto. A moto era maior, diziam, do que os modelos antigos que por vezes Escavadores encontravam nas ruínas, com um corpo comprido que por vezes a fazia imaginar como o outro conseguia manejar tamanho peso, mas suas rodas de borracha revestida e o motor de ruído suave (Zero lhe dissera que pedira para abafarem a saída, porque ele odiava o barulho alto que a Unicórnio antes fazia) realmente tornavam a moto de Zero uma invenção para se admirar... especialmente quando não se estava montada nela, Melissa acrescentou para si mesma.
O horizonte pareceu ficar mais claro, como se pudessem ver o crepúsculo sem os céus escuros das Terras Sombrias, mas Zero deteve sua máquina e Melissa percebeu que havia algo de incomum acontecendo.
_ O que foi?
_ Fogo. Um incêndio muito grande, olha – apontou com a mão direita – Eu tava pensando que podia ser alguma iluminação por causa da noite que tá chegando, mas parece que aumentou mais bruscamente agora. Tem alguma coisa ruim acontecendo na Fortaleza de Melk.
_ Deve ser uma das batalhas tradicionais deles. O que você acha, devemos intervir?
_ Bom, pelo tanto que falam, acho que a capacidade dos guerreiros de lá deve ser suficiente pra lidar com isso, Mel. Mas – olhou para trás, vendo o rosto da amiga e dando um sorriso contrariado pelo visor amplo do capacete – vai ser chato ficar aqui parado, esperando o fogo passar. Além disso, meu pai me mandou entregar isso o quanto antes pra a Rainha Christabel, e acho que vai ser mais rápido se a gente for dar uma mãozinha. Duvido que os caras de lá achem ruim receber uma ajuda, e você?
Melissa deu um sorriso igualmente contrariado. Conhecia Zero bem demais para se deixar enganar; ele podia estar hesitando por causa dela, mas o fato era que ele queria participar da luta. Podia ter a ver com ajudar os guerreiros da Fortaleza de Melk, mas a principal razão era que ele gostava daquilo.
_ Você não vai crescer nunca, né? Tudo bem, vamos, eu preciso mesmo testar o presente que seu pai me deu.
_ Jóia! Só não se arrisca demais, hein Li? Você deve poder lutar bem sem ter que chegar perto de nada muito perigoso.
_ Pára de ficar me chateando e vamos logo, Zero!
Em Melk, a situação era no mínimo inusitada. Uma legião de Rastejantes e soldados humanos vestidos em trajes metálicos escuros rudes e grossos atacava agora, sendo liderada por uma figura que mesmo os experientes soldados da fortaleza nunca tinham visto antes; muito pouco diferente de um ser humano alto vestido com uma longa capa escura, o desconhecido tinha chifres curtos voltados para o alto e dentes pontiagudos, além de dedos compridos. Ele estava obviamente enfrentando mais dificuldades do que esperara com Christabel, mas mesmo os defensores da fortaleza que tentavam atingi-lo em meio à sua disputa não tinham qualquer chance contra ele, suas setas e lanças sendo detidas por uma barreira invisível à sua volta, e depois dos dois primeiros espadachins que o atacaram frontalmente terem sido cremados por um brilho de seus olhos vermelhos, ele pôde se concentrar em enfrentar a rainha integralmente.
Um aríete estava forçando o portão principal que dava acesso às terras Além da Fronteira, e ninguém conseguia subir nas muralhas para detê-los daquele lado. Os arqueiros faziam o que podiam das seteiras, mas não era o suficiente para atingir aos que chegavam ao portão.
E Christabel não estava tendo melhor sorte. Se por um lado ela conseguia enfrentar o estranho em igualdade de condições, e também se isolara de outros ataques com eficiência, por outro ela não conseguia vantagem contra ele. Nunca antes encontrara um rival à sua altura em magia, e estava precisando de toda a sua concentração e habilidade para não ser derrotada. Ela não podia liberar mais de seu poder sem comprometer a muralha principal, onde ela e o desconhecido se enfrentavam, e também não tinha espaço para destruir o aríete; não sem arriscar abrir a guarda a um ataque do perigoso desconhecido.
Ele era estranho em mais de uma maneira; muitos dos soldados haviam se apavorado quando aquele desconhecido pousara sobre as muralhas, devidamente protegido por um grupo de Místicos que fora quase completamente abatido por Christabel, a não ser a pequena hoste que o acompanhava. Ele protegera a todos tempo suficiente para chegar sobre as muralhas, e com exceção de alguns poucos que o haviam atacado diretamente, a maioria do grupo defensor naquela parte havia debandado. O mesmo ocorrera com todas as montarias que tinham ali; Christabel podia sentir algo como uma redoma de medo ao redor dele, à qual ela própria era imune por ser uma usuária poderosa de magia, mas não se enganava; havia algo nele que era semelhante a todos os que habitavam ali, incluindo ela própria. Ela não sabia o que era, mas era tão parte integrante dele quanto de todos os humanos à sua volta, e era isso que lhe dava tamanho poder.
“Me satisfaz muito conhece-la, jovem rainha – ele dissera na mente dela, assim que Christabel o confrontara – Principalmente por poder comprovar que as palavras de nossos guerreiros não foi em nada exagerada; seu dom para as artes é incomumente poderoso. Será uma honra enfrenta-la.”
_ O prazer é seu – ela dissera – E apenas por pouco tempo.
Mas não estava sendo tão simples. Para a rainha, era como se as bordas da realidade tivessem sido estreitadas de algum modo; estava consciente da passagem sobre a muralha onde estava, da presença obscura do desconhecido diante de si mesma, destacada entre a escuridão tão familiar das Terras Sombrias, e do confronto entre as vontades dos dois. Todo o resto parecia não mais existir. Sentia a pressão à sua volta como se várias garras enormes e vermelhas a pressionassem de ambos os lados, e seus olhos cinzentos faiscavam como os relâmpagos que trovejavam à distância. As duas mãos da rainha estavam erguidas para os céus, enquanto o desconhecido mantinha sua mão esquerda estendida, e Christabel percebera então que o que parecia ser uma capa longa era na verdade um tipo de asa semelhante às de um morcego, brotando do braço do desconhecido. E embora o esforço também fosse bem visível no rosto dele, a criatura sorria. Parecia estar gostando do confronto.
O Capitão Marco estava coordenando os esforços no pátio, incapaz de conduzir seus homens para perto suficiente do portão principal. Seria conveniente, ele sentia, se a feiticeira conseguisse tirar aquele desconhecido das muralhas; com ele ali, não havia como fazer os homens se aproximarem para dar apoio ao portão, e era questão de tempo até que atravessassem. O melhor trabalho estava sendo feito pelos arqueiros, que disparavam por sobre o muro e pelas frestas já abertas no portão reforçado, além de abaterem os Místicos quando estes se arriscavam a voar sobre os muros, despejando seus jorros de fogo nos defensores. Mas isso estava muito longe de ser suficiente.
“Mais alguns golpes, e aquele portão vai ceder como se fosse de cortiça! E nem mesmo nossa Carga de Cavalaria vai resolver desta vez! Os animais estão ainda mais apavorados que os homens! Maldição... Acho que este é o dia, enfim.”
Desde criança, Marco temera um dia em especial; o dia em que o povo de Melk e sua bravura não seriam o bastante, e o último tampão entre os monstros de Além da Fronteira, e a civilização que ainda cambaleava para se reerguer, cairia. E agora, o temor parecia ter se materializado. Havia um amargor terrível nessa idéia, uma sensação de cansaço que descanso algum poderia sobrepujar. Mas, também... uma última determinação que parecia maior do que todo o resto. Foi o que o fez sorrir com ferocidade para o portão oscilante.
“Que seja, então! A vida e a luta dos guerreiros de Melk sempre foram grandiosas; nossa queda não será diferente!”
_ Você! – voltou-se para o soldado à sua direita, que também olhava para o portão com ansiedade – Vá até o aviário, e ordene que as palavras sejam ditas; que cada cidade se arme e resguarde o mais urgentemente possível.
_ Capitão...! – o soldado, um rapaz de rosto magro que Marco conhecia por Beto – O senhor não quer dizer que...
_ Isso é uma ordem, soldado! – o rosto de Marco endureceu-se – Cada segundo a mais de demora é um segundo a menos de sobreaviso às outras cidades. Mexa-se!
Soldado algum desobedecia quando Marco ordenava, e daquela vez não foi diferente. Os demais, em grupos esparsos ao longo do pátio, vieram até ele e começaram uma cacofonia de vozes que ele não permitiu que seguisse.
_ Silêncio, todos! Formação de Barreira de Escudos no meio do pátio, e lanceiros à frente! A barricada do portão vai ceder a qualquer momento, e nossa rainha parece incapaz de nos proteger por enquanto.
_ Ela pode muito bem ter...! – começou um dos tenentes, mas Marco o interrompeu com brusquidão.
_ Silêncio! – ele não tinha qualquer amor pela rainha, nem isso era segredo, mas era contra sua política e princípios voltar qualquer hostilidade contra Christabel durante uma batalha. Fosse como fosse durante o resto do tempo, ela era aliada deles nas lutas, e ele sentia que a concentração dela seria de algum modo prejudicada se tivesse que enfrentar hostilidade deles, também, e foi por lembrar disso que não houve mais críticas naquele momento – Aquele desconhecido está tomando toda a concentração de Sua Majestade ao que parece; acredito, então, que os guerreiros da fortaleza terão que provar a si mesmos capazes de enfrentar demônios e inimigos sem magia, ou será que decaímos tanto assim?
O orgulho de guerreiros ainda era o ponto mais sensível dos homens ali, e Marco fora sábio em explorar isso; mesmo entre seu medo, os soldados crisparam seus dedos nos cabos das armas e suas expressões ficaram mais ferozes. Como Marco, tornariam seu último dia no mundo o dia final também para seus inimigos, se já havia chegado a tal ponto. E o Capitão acenou afirmativamente ao reconhecer a decisão no rosto de seus comandados.
_ Muito bem; preparem-se para resistir e repelir a invasão! Novatos, no portão oriental! Evacuem todas as mulheres e crianças que puderem!
Entre os soldados também havia mulheres; ali, elas eram tão ferozes quanto os homens, algumas até mais. Mas nem todas eram guerreiras, e a tendência das mães era sempre proteger primeiro aos filhos, e um êxodo começou no acesso oriental da fortaleza, enquanto todos os homens ainda disponíveis se acumularam no pátio central, numerosos o bastante para que quase não houvesse espaço para passagem ao lado deles.
Um som semelhante a um rugido, que Marco não reconheceu, veio da retaguarda deles e ele voltou-se intrigado. Os monstros ainda não haviam passado; como era possível que houvesse algo rugindo ali? Teriam se infiltrado sob a terra...? Mas, se Christabel já tornara aquilo impossível...!
_ Dá licença, dá licença! Abre alas! Sai, caramba!
A voz que ouviu era desconhecida para ele; uma voz masculina, mas jovem. Pelo menos quatro anos mais novo do que ele próprio. E o som ficava mais e mais alto, a ponto dele finalmente poder ver a massa de guerreiros no centro do pátio mover-se para dar passagem. E Marco viu um engenho motorizado deter-se diante dele, deslizando sobre duas rodas e com duas pessoas sobre ele: um rapaz, o piloto, decerto a pessoa que falara, e uma garota aproximadamente da mesma idade que o outro, loira e com uma expressão preocupada olhando para o alto das muralhas, onde a feiticeira combatia a criatura desconhecida. Alheio a isso, o rapaz apoiou o pé esquerdo no chão e voltou-se para ele.
_ Acho que você deve ser o líder, aqui. Oi! Eu sou Zero. Temos uma encomenda pra a Rainha Christabel, mas acho que chegamos numa hora ruim, né?
_ Hora ruim? – Marco não podia acreditar no que estava ouvindo. Aquele imbecil devia ser cego! – Estamos prestes a tombar, seu tolo! Saia daqui e leve sua companheira com você; é tarde demais...!
_ Tá, desculpa da piadinha, vamos direto ao que interessa – e sua fisionomia mudou, ficando séria – Aquele portão vai cair logo; por que não estão apoiando?
_ Quem você pensa que é para...
_ Zero! – a moça loira na garupa do desconhecido chamou, apontando para a direção onde a rainha lutava com o desconhecido – ali em cima... Eu não sei o que é, mas é muito forte... E parece que tem uma... escuridão ao redor, eu não sei... Um frio muito forte, uma sensação de tristeza...!
_ Sua amiga é uma feiticeira? – Marco indagou.
_ É por causa daquilo, então? – Zero ignorou a pergunta do capitão – Escuta, acha que podem me seguir se eu atacar na frente?
_ Como?
_ Quando os caras entrarem – Zero fez Melissa descer de sua garupa, explicando enquanto o fazia – se aquela coisa é obra deles, vão esperar por um campo aberto e sem oposição, e vão ganhar terreno. Mas se sofrerem uma carga inesperada, acho que dá pra virar a mesa. Vou atropelar eles com a minha moto, mas não posso com todo mundo. Preciso que me apoiem, tá bom?
_ Afinal, quem é esse garoto? – um soldado perguntou atrás deles, e Zero olhou com reprovação para ele.
_ Garoto? É, devo ser mesmo. Mas sou o garoto que vai bater de frente com aqueles fulanos, e desafio qualquer um dos valorosos Cavaleiros da Fortaleza de Melk a ficar pra trás enquanto eu luto sozinho!
Os olhares se enrijeceram, e um novo ânimo pareceu brotar em todos; mesmo Marco sentiu-se influenciado. Por enquanto, o mais importante não era quem era aquele garoto atrevido que a jovem feiticeira chamara de ‘Zero’, nem se ele estava montado numa máquina ou não; nenhum estrangeiro nunca pudera clamar ser mais bravo do que um Ocidental de Melk, e seria ridículo permitirem que isso mudasse em seus últimos momentos! Além disso... Marco não pôde deixar de sorrir com a ironia... Zero estava cavalgando a única montaria que dificilmente seria afetada pela aura de pânico do estranho.
_ Zero... – Melissa começou, mas o outro estava acelerando, a Unicórnio agora parecendo um animal ansioso sob seu dono, e ele sorriu para ela.
_ Tá tudo bem, irmãzinha – ele piscou para Melissa, e então apontou para o muro – Escuta, eu não sei o que tá acontecendo ali em cima, mas acho que você sabe. Faz o que puder, tá bom? E se cuida até eu voltar.
_ Tá... tudo bem – ela ergueu um pouco o capacete de Zero e deu-lhe um beijo rápido sobre os lábios, recebendo dele um olhar mais do que admirado – Veja se volta logo, seu idiota.
E correu para longe do pátio, enquanto Zero ficava olhando para ela, um pouco atordoado. Ao notar que os outros estavam olhando para ele, baixou seu capacete sobre o rosto e concentrou-se nos portões. Faltava pouco agora.
Outro baque. Ele viu as portas vergando para dentro, e acelerou. A Unicórnio estremeceu abaixo dele, e Zero se concentrou no que ia fazer. Um tanto impetuoso, impensado, mas era melhor assim, ao menos daquela vez. Se pensasse, perderia a coragem.
Outro estrondo, e ele viu o suporte vergar. Era isso; o próximo baque ia derrubar o portão. Ele tivera a chance de medir os intervalos entre um e outro ataque, e quase podia ver os portadores do aríete do lado oposto naquele momento; retirando-o, puxando para trás novamente, erguendo...
Zero acelerou, e desta vez não deteve sua moto, arremetendo na direção dos portões. Não havia no que pensar naquela hora, a mão esquerda no guidão e a direita erguendo a espada, enquanto aumentava a velocidade. Tinha a impressão de ouvir um brado dos Guerreiros de Melk atrás de si, tinha a impressão nítida de que o ar parecia ficar mais gelado à sua volta, mas ele sentiu que estava apenas no seu exterior; por dentro, ele estava fervendo! E não podia pensar a respeito, nada de imaginar que podia ter calculado mal, e o portão ainda precisaria de mais um golpe para cair. Confiava no que aprendera com o pai, confiava que o golpe seguinte ia derrubar as portas, porque senão...
Um rugido estranho se fez ouvir em algum lugar lá embaixo, e Christabel teve dificuldades para se conter, porque aquele som era absurdamente familiar. Mais do que ela, no entanto, o estranho demônio que a enfrentava parecia ter ficado tremendamente admirado, porque voltou sua visão para baixo e distraiu-se do confronto por um segundo e meio. Apenas um segundo e meio.
Mas era o segundo e meio de que a rainha precisava. Num gesto brusco e poderoso, Christabel agitou seus dois braços na direção do desconhecido, e de repente o mundo inteiro pareceu voltar à sua percepção, enquanto as garras opressoras que tentavam se fechar à sua volta agora agiam sob seu comando, e algo que parecia uma imensa armadilha de ferro fechou-se sobre o desconhecido. Não era físico, propriamente, nem visível, mas o efeito fora semelhante, porque o desconhecido curvou-se e estremeceu, dentes cerrados e tentando estender novamente a mão na direção de Christabel; a luta ainda não estaria perdida, ele ainda poderia resistir, virar o jogo se...!
Um novo ataque, agora de outro lado, ao mesmo tempo que o desconhecido sentia que era arremessado violentamente contra as pedras do alto da muralha, e incinerado ao mesmo tempo. Um feitiço incendiário de Impacto! E... não da rainha. E, lá embaixo, a luta...!
O portão caíra, e os invasores tinham acabado de largar o aríete. A mesma estranha força de seu aliado que lhes dava vitalidade e disposição para atacar também parecia assustar seus inimigos; nenhum deles tentara opor-se ao seu aríete, nenhum deles ficara sobre as muralhas para atacá-los! A odiosa fortaleza finalmente cairia!
E então, ele viera. A maioria deles sequer vira o que tinha sido; um estrondo alto, parecendo uma fera, e então algo se abatera sobre eles, atingindo-os como o aríete antes atingira os portões, e logo depois dele os Guerreiros de Melk irromperam, arrastando o grupo parado no portão como uma onda irresistível. Homens da fortaleza avançavam com lanças, espadas e escudos, abrindo caminho mediante o que pareciam alvos parados, surpresos demais com a primeira investida, e liderados por uma criatura que nunca tinha sido vista nas terras Além da Fronteira, um monstro de metal sobre rodas de borracha cavalgado por um rapaz que brandia uma espada longa.
Zero tivera a nítida impressão de ver uma bola de fogo cair do alto da muralha, à sua direita, quando sua Unicórnio atravessara a massa opositora, e ele agora estava virando para esquerda enquanto os soldados de Melk expeliam os pretensos invasores com vigor. A sensação de frio à sua volta se fora, e ele sentia-se mais leve. Fosse o que fosse que Melissa tinha percebido devia ter sido desligado, porque a incapacidade de agir acabara. Acelerando e tornando a arremeter contra o grupo de atacantes, ele viu insetos de quatro patas se agitando como braços, de pé sobre mais duas, mas debandando enquanto os arqueiros de Melk agora chegavam aos portões, e começavam a fazer fogo direto do portão aberto. A fortaleza prestes a tombar agora estava revidando com força, e os que antes tinham vigor para atacar agora temiam a vingança dos defensores. E, Zero percebeu divertido, o ronco do seu motor quando acelerava parecia aumentar aquele medo dos atacantes.
_ Jóia! – ele sorriu, aproximando-se ao máximo do tanque de sua moto, reduzindo a área de alvo caso alguém tivesse flechas – Mais umas duas voltas e eu mando esses caras pra casa, espero! Vamos lá, gracinha, hora de trabalhar!
O portão estava seguro, com guerreiros e arqueiros postados lá e se espalhando, abrindo mais e mais a área sob seu comando e obrigando os atacantes a recuar. Zero passou para a direita da porta principal, agora curioso com a coisa que vira caindo. Na primeira oportunidade que tivesse, iria se aproximar para ver; ainda podia ver algo queimando no chão...
Um vulto se levantou! Em chamas, algo parecido com um braço estirado em sua direção, Zero de repente teve a impressão de que o ar crepitava à sua volta, um instante antes de ser atingido por um relâmpago. Fora rápido e repentino demais para que desviasse, ou fizesse qualquer coisa, e ele praguejou enquanto era atingido.
_ Diabos! Que luz é essa? Ai, meus olhos!
No susto, ele largara a espada, mas apesar de ter sentido algum formigamento na pele em primeira instância, continuou arremetendo, agora na direção do vulto em chamas, que novamente pareceu ficar surpreso.
_ Ainda vivo...?!
_ Desgraçado... Você me assustou!
Zero sacou a pistola de sua cintura e atirou enquanto se aproximava, o vulto flamejante cambaleando para trás como se fosse bruscamente empurrado enquanto era atingido uma vez, e duas... e após a quarta vez, Zero fez a Unicórnio empinar e atropelou aquela figura estranha, passando sobre ele com um solavanco e usando todo seu esforço para não cair. Sentindo, mais do que sabendo que ainda não estava terminado, Zero brecou sua roda dianteira e fez meia volta, detendo-se então para ver sobre o que tinha acabado de passar.
A figura ainda queimava, embora agora fosse menos. Estava ferido, evidentemente; uma ampla marca redonda sobre seu peito, como se atingido por uma bala de canhão... obviamente, obra de Melissa... o chifre do lado direito de sua cabeça quebrado, quatro buracos de bala em seu peito, três sobre onde estaria o coração num ser humano... o nariz estava quebrado, onde fora atingido pela roda da frente da Unicórnio, enquanto outra marca de roda desenhava-se sobre o peito... e ainda assim, a coisa ficou de pé diante dele, com um sorriso maldoso e parecendo surpreso. Zero apontou para ele sua pistola, dizendo em voz clara:
_ Você é positivamente a coisa mais feia que eu já vi, e comparando com o Vander, isso quer dizer alguma coisa!
_ Você não é daqui – a coisa falou, como se ignorando o que tinha ouvido – E sobreviveu a um relâmpago à queima-roupa. Estranho... Não estou acostumado com isso.
_ Ah, aquilo era um relâmpago? – Zero sorriu, um ar tolo no rosto – Pensei que fosse uma lanterna! Fraquinho, eu achei.
_ Incomum, de fato – a fronte do desconhecido começou a sangrar muito, e vinha da base de seu chifre esquerdo, ainda intacto – Não vou esquece-lo, rapaz. Qual o seu nome?
_ O nome é Zero, e o prazer foi meu – ele destravou a pistola, apontando-a com mais firmeza – E apesar do mau jeito, acho que preciso pedir pra você ir embora. Já fizeram uma tremenda bagunça, sabe, e vamos passar a noite inteira arrumando; então, se não se importa... vai consertar esse chifre quebrado.
_ Irei. – ele abriu seu sorriso de dentes pontiagudos, mas se aquilo impressionara Zero, não ficou evidente em seu rosto – Meu nome é Ahl-Tur, Mestre dos Arcanos. Voltaremos a nos encontrar.
O demônio abriu seus braços então, e as asas pareceram encher-se com um vento não natural que o carregou para o alto, enquanto Zero o mantinha sob mira e retrucava:
_ Eu não te perguntei nada, Altura. E se voltar aqui, com esse guarda-chuva nas costas, te quebro esse outro chifre! Ouviu?
_ Meu nome é Ahl-Tur, e não Altura – a voz sombria soou do alto, enquanto ele se tornava menos visível no céu escuro – E vou esperar ansioso por lhe dar essa oportunidade, menino Zero. Com certeza.
_ Menino o caramba, idiota! – Zero bradou para os céus, embora algo em sua razão lhe dissesse que o outro não estava mais ouvindo – Volta aqui agora, e vamos resolver isso no braço! Anda!
Mas o assunto já tinha terminado, ao menos por ora. Zero ficou olhando para o céu, por onde vira a criatura desaparecendo, e lentamente baixou a pistola vazia e a guardou na cintura. Por um instante longo, ele ficou quieto e olhando para o alto, enquanto ao seu redor as forças atacantes recuavam.
_ Zero! Zero, você tá bem?
Melissa veio correndo assim que os guerreiros e arqueiros de Melk começaram a expulsar os oponentes. A luta daquela noite terminara; sem seu líder e o poder do medo que ele espalhava, assustados pelo monstro de metal que surgira de lugar nenhum, eles haviam perdido a vontade de lutar. E Melissa veio em sua direção, procurando por seu amigo, aliviada em ver que, exceto por alguns arranhões e contusões menores, Zero parecia ileso.
_ Zero? Zero, você tá me ouvindo?
Ele então baixou seus olhos para ela e, por um momento, Melissa pensou para si mesma que nunca o havia visto tão imponente ou seguro de si. Se aquela era a expressão de Zero quando ele havia atravessado a massa de atacantes, não era de admirar que eles tivessem fugido.
_ Zero...
Então ele arregalou os olhos e desequilibrou-se, quase caindo da moto entre suas pernas, e balbuciando:
_ Ele me tacou um raio! Um raio, Li, daqueles relâmpagos assim! – e abriu as duas mãos, palmas viradas uma para a outra, significando algo de tamanho grande – Que susto! Eu podia ter morrido!
_ Quem fez o quê? – ela olhou na direção para onde Zero estava olhando, no céu, e então olhou novamente para ele com ar de dúvida – Alguém acertou você com um relâmpago? Pára de falar besteira, se isso fosse pra valer você estaria morto!
_ Mas foi mesmo, Li! É sério, eu vinha vindo pra esse lado, aí aquela coisa levantou e...
_ Zero, você provavelmente bateu a cabeça por ter caído da moto, ou coisa parecida. Anda, vamos pra dentro que eu vou procurar alguém pra cuidar de você.
_ Mas é sério...!
Christabel estava olhando do alto da muralha, enquanto a feiticeira loira desconhecida se aproximava do portão principal, onde os soldados já clamavam em altos brados pela vitória. Mas ela não estava olhando para a moça, e sim, para o rapaz que a acompanhava, falando sem parar e tentando convencê-la do que tinha lhe acontecido... e trazendo sua montaria de metal consigo. O ronco daquela máquina, a forma como ele chegara... Aquilo era idêntico ao sonho que a rainha tivera na noite anterior. Ele chegara em seu momento de maior necessidade, dando a ela a chance de derrotar ainda outro inimigo, e levando seu povo à vitória.
Viu que os soldados o estavam saudando lá embaixo. Nada estranho demais, decerto; as multidões sempre amavam um vencedor. E aquele rapaz, fosse quem fosse, havia conseguido para eles uma vitória quando tudo o que esperavam era morrer com honra.
Os olhos dela faiscaram. Ela os conduzira para muitas vitórias, também, mas nunca tivera qualquer reconhecimento. E não ia permitir que algum recém-chegado montado num aparato barulhento tomasse o que lhe era devido.