Eis aqui nós de novo, durante a domingueira, pra mais um pedaço do finalzinho da Christie! Saudações do Louco!
Vcs não precisam acreditar, mas juro, não vi que tinha ido tão pouquinho no último post. Ah, bem, vejamos se eu compenso por isso hoje.
Heh, comprei essa semana o primeiro capítulo de
A Torre Negra, do Stephen King. O livro
O Pistoleiro, que descobri no prefácio, é um antigo projeto do Mr. King. Algo parecido com
O Silmarilion do Tolkien, que ele mesmo só se tocou de estar deixando de canto depois de quase morrer atropelado.
Escritores têm uma obrigação, sabiam? Com os mundos que visitam, pra contar suas histórias, e com o mundo em que vivem, de deixá-los a par dos mundos que visitam. Não podemos morrer até terminarmos de relatar as viagens fantásticas que fazemos pra esses outros mundos. E devemos às pessoas incríveis que encontramos nessas viagens que os outros, do nosso lar, os conheçam e falem a respeito deles. Acho que adiantei um bocado o conhecimento sobre Christie, Zero e o mundo deles... mas ainda falta um pouco. Tenham paciência, eu peço. Acho que muito do esforço vai ter terminado até o fim desse ano.
Forte amplexo do Louco.
(...)
“Com passos pesados e apressados, ele entrou no Salão Branco e seu amigo sentiu que ele parecia perturbado. Um olhar para trás foi suficiente. Alexandre estava trajando sua armadura completa novamente, e seus passos vinham acompanhados de um compasso metálico causado pelos adereços em suas botas que não prenunciava nada angelical. Muito ao contrário, Cláudio concluiu com perturbação; fazia pensar numa visão futura, tropas marchando adiante envoltas por uma grande escuridão. Abalado, e sabendo que não podia se perder em pensamentos de tal tipo diante de seu amigo, Cláudio saudou Alexandre.
_ Bem vindo, amigo Alexander. O que há de errado? Você parece perturbado.
_ Como sabe... que há algo me perturbando?
Cláudio sorriu do olhar desconfiado de Alexander; não perguntaria aquilo se pudesse ver a própria face. E Alexandre baixou os olhos, suspirando profundamente enquanto parecia recuperar sua compostura e apertou a mão de Cláudio
_ Desculpe, caro Cláudio. É bom... rever você. Perdoe-me pelos meus modos.
_ Esqueça; mais importante agora é saber o que o aflige. Há algo que eu possa fazer por você?
Alexandre sorriu levemente para o amigo, mas tornou a evitar seus olhos. Ao invés de responder imediatamente, ele foi até o terraço da Torre de Vigia de Cláudio e contemplou a vastidão abaixo deles, servindo-se de vinho. Cláudio o acompanhou lentamente, esperando. Sabia que o outro falaria quando estivesse pronto.
_ Ah, meu amigo Cláudio... Sempre prestativo, sempre paciente... É sua maior virtude, acredito. Me pergunto como você consegue manter-se assim o tempo todo. Nunca se aborrece?
_ O tempo todo, na verdade – Cláudio sorria como quem pede desculpas, ao receber o olhar dúbio de Alexandre – Por vezes me pergunto se estou fazendo a coisa certa, sabe... Aguardar por tanto tempo. Há ocasiões em que me sinto culpado, quando eles ferem a si mesmos... Pensando que talvez pudesse impedí-los, de alguma forma.
_ Realmente? – Alexandre pareceu interessado ao ouvir isso, desviando sua atenção da vista lá de baixo para encarar Cláudio – E depois?
_ Depois, me lembro de meu papel – Cláudio voltou seu olhar para a terra abençoada abaixo deles, parecendo perder-se na visão – Me recordo da beleza única em tudo o que há além dos horizontes... Em tudo o que se pode perder num momento de frustração, de fúria mal aplicada... E sinto minha alma se acalmar ao lembrar que, afinal, nós também levamos muito tempo para aprender harmonia. Eles precisam de seu próprio tempo, e memórias, para aprende-la.
Alexandre voltou-se novamente para o mundo lá embaixo, servindo-se de um gole generoso de vinho. E Cláudio tornou a olhar para o amigo, lendo algo em sua expressão.
_ E, se me perdoa pela ousadia, Alexandre... Acredito que dúvidas da mesma espécie estejam perturbando sua paz agora. É isso?
Alexandre voltou-se, outra vez parecendo alerta ao deparar com o olhar pacífico de Cláudio. Ele nunca fora capaz de ocultar totalmente suas intenções do amigo, possuidor de uma espécie de clarividência que nascia do que via diante de si. Com um sorriso forçado, Alexandre voltou seu olhar para o mundo lá embaixo e pareceu murmurar para si mesmo, ao invés de responder a Cláudio:
_ Harmonia... Tempo...! Ah, Cláudio... Eu não sei se devo admira-lo por conseguir manter sua lucidez com tamanha tenacidade, ou se reconheço essa paciência como primeiro sinal de insanidade.
Cláudio meramente continuou olhando para o amigo. Alexandre olhava adiante, os olhos cintilando com uma paixão nova e algo mais. Era melhor que abrisse seu coração sem interrupções.
_ Sabe como eles são lá embaixo, Cláudio. Os humanos, embora mais frágeis, estão fadados a um grande desenvolvimento. Têm uma grande curiosidade, e como as crianças que são, ansiedade por aprender. Os outros, Elementais, Répteis, Feras... Todos se desenvolvendo ao mesmo tempo. E, como as espécies inteligentes que são, já começaram a se hostilizar. Cada tribo parece pensar que sua existência só pode ser garantida assegurando a destruição das outras. Uma vez terminado este ciclo de destruição externa, o vencedor indubitavelmente começará um extermínio dentro de seus próprios clãs. Sabe como se portam; o medo do desconhecido, que se torna em ódio cego e sem razão. E por fim, terminam odiando a si mesmos, quando não resta mais nada ao redor para temer.
Olhou com tristeza indisfarçável para o mundo abaixo deles, e mesmo Cláudio entendeu a raiz do problema. Claro que entendia, ele também partilhava daquele temor. Como sempre, Alexandre estava preocupado com a sobrevivência dos menos aptos. O quadro que pintara era muito provável... Não, era inevitável. Fora assim com a espécie deles também. Era sempre o mesmo, não importando as formas que tivessem. E Alexandre suspirou:
_ Mais frustrante é pensar nisso, um problema que já conhecemos, quando já temos a resposta diante de nós.
_ Do que está falando? – Cláudio voltou os olhos para Alexandre, agora um pequeno temor dentro de seu espírito, como um verme invasor. Algo no que o amigo dissera... Na forma como ele voltou-se...
_ Já sabemos muito bem, como você lembrou, o tempo que será necessário para que aprendam a viver consigo mesmos. Sabe quantos deles sofrerão, morrerão... E o tempo todo, devemos supostamente ficar de braços cruzados, assistindo a tudo, com a resposta em nossas mãos! É um absurdo!
_ Não temos a resposta, Alexandre... – Cláudio disse em voz baixa – Não há o que possamos fazer para impedir...
_ Mas há algo que podemos fazer, Cláudio! – Alexandre insistiu – Podemos mostrar-lhes o caminho! Podemos poupa-los do que nós mesmos tivemos que passar a tempos atrás! Basta que tomemos um papel mais ativo do que o de meros observadores, aguardando que o fim se apodere de tudo!
Cláudio sentiu um peso sobre seu coração, um frio em sua alma enquanto seu pior temor se confirmava. Não queria pensar naquilo, não queria abandonar sua esperança de estar enganado, mas sabia dentro de si mesmo que estava correto. Ele não era tolo, e sabia o que Alexandre estava sugerindo.
_ Alexandre, essa solução... Por acaso, você não estaria pensando em...
_ Você sabe do que estou falando, Cláudio – Alexandre olhou diretamente para o amigo – Tomarmos o controle, liderarmos! Ensinarmos estas crianças a caminhar! Antes que realmente se firam, antes que percam toda a esperança de ficar de pé, antes mesmo de compreender o que isto significa!
_ Não é esta a nossa função, amigo Alexandre... – Cláudio objetou com cuidado – Somos zeladores aqui. Não instrutores. Você sabe disso.
_ Qual o uso para um zelador que deixou seu patrimônio ser destruído, Cláudio? – perguntou Alexandre, exasperado – Ou para um pastor que deixa seu rebanho se matar? Você é sensato, já reconheceu os sinais! Somos zeladores, você diz? Temos que protegê-los, então. Protegê-los de si mesmos!
_ Se tentarmos educá-los forçosamente, Alexandre, se ressentirão contra nós – Cláudio retrucou de olhos baixos – Temem uns aos outros, por serem diversos entre si, você o disse. Pode imaginar o terror que inspiraremos apenas por sermos quem somos? Somos mais poderosos, despertaremos inveja e ódio.
_ Como você mesmo disse, somos mais poderosos – Alexandre deu de ombros – É verdade, alguns talvez acabem se revoltando contra nós, mas não é nada a que não possamos fazer frente. Quando comparado ao que eles perderão em conflitos tolos entre si mesmos...! Talvez, de fato, acabemos por purgar as sementes que cresceriam para germinar na ruína do rebanho. Estaríamos poupando a todos de séculos, talvez milênios inteiros de sofrimento desnecessário, Cláudio!
_ É claro, eu não esperaria menos de você, meu amigo – Cláudio afastou-se da borda da varanda, os olhos entristecidos voltados para baixo – Um esforço nobre e honrado a fim de prevenir a tristeza a outros. Como sempre, seus atos são movidos por objetivos elevados.
_ Eu sabia que me entenderia, Cláudio! – Alexandre sorriu, feliz por ter conseguido que Cláudio enxergasse a verdade – Como sempre foi, você é capaz de diagnosticar com precisão o problema, sua fonte e sua solução! Posso contar com a certeza de que estará ao meu lado, então?
_ É exatamente por poder diagnosticar um problema, caro Alexandre, que não posso apóia-lo no que pretende – Cláudio voltou-se com tristeza para o amigo – Por favor, perceba o que está dizendo.
“É claro que podemos contornar qualquer oposição que possam oferecer. Os dotados em magia estão apenas se desenvolvendo, e nada poderiam contra nós. Os guerreiros, por poderosos que sejam, não teriam qualquer possibilidade de nos destruir, pouco importando o que fizessem. Nossos corpos, mentes e espíritos vão muito além dos deles.”
“Mas também eles têm este potencial para a grandeza, um potencial que lhes será negado se tentarmos impor-lhes o que chamamos sabedoria. Encontramos nosso caminho por nós mesmos, por meio de muito sofrimento e de eons de existência. Também eles deverão fazê-lo. Se nos impusermos, eles verão as coisas à nossa maneira, e até que retomem seu verdadeiro caminho, ainda mais tempo será adicionado a uma já longuíssima espera.”
Alexandre fitou Cláudio em silêncio, e por um momento o guardião imaginou se o amigo teria lhe dado ouvidos. Ele desejou silenciosamente que sim.
_ Não consigo entender por que insiste tanto em desviar seus olhos da alternativa, Cláudio. É verdade, há algum risco envolvido em tomar a frente. Mas entre deixar que matem a si mesmos, e destruam esta terra linda que lhes foi dada no processo por pura ignorância, ou tomar um papel ativo para impedí-los, eu sei qual deve ser minha escolha.
_ Sei que se impacienta, amigo – Cláudio achava difícil persistir; já dissera tudo o que podia para dissuadir Alexandre. E começava a duvidar de que fosse capaz – O poder, no entanto, nunca satisfaz a si mesmo. Não duvido de que o governo começaria com a melhor das intenções, e talvez durasse assim por muito tempo. Mas o domínio é uma tentação à qual ninguém é imune. E muito poucos são capazes de resistir a ela.
_ Está dizendo que eu sucumbiria à tentação e me tornaria um déspota, Cláudio? – Alexandre olhou de cenho franzido para o outro – Acreditei que fazia melhor juízo de mim.
_ Por favor, não me entenda mal Alexandre. O que estou dizendo é que eu próprio não sei se resistiria a tal tentação. É um caminho sem volta. Um dia, vamos despertar para perceber que nos afastamos demais de nosso objetivo, e então nos daremos conta de que já não importa. Mas haverá sangue em nossas mãos, inclusive o sangue de inocentes, e tudo o que teremos realmente conseguido será rancor dos oprimidos, e a cobiça dos ambiciosos. E assim será até que tombemos, vítimas do que plantamos pelo caminho. Tombaremos, apenas para abrir caminho para novos opressores, deixando que fiquem sozinhos novamente para aprender por si próprios, muito afastados da trilha, e muito próximos da extinção.
Alexandre fitava Cláudio em silêncio. Não era preciso que dissesse coisa alguma; Cláudio podia perfeitamente ler em seu rosto que suas palavras estavam sendo desperdiçadas. Os olhos de Alexandre eram aço cinzento, inflexíveis. Sua decisão já havia sido tomada antes mesmo de ir à Torre de Vigia de Cláudio. Sua intenção e esperança tinham sido conquistar o amigo de longa data a colaborar consigo, e agora sentia que perdera seu tempo. Desviou seu olhar, e voltou-se para a saída.
_ Obrigado pelo vinho.
_ Alexandre...
_ Eu já ouvi o bastante! – os passos de Alexandre detiveram-se ao lado de uma mesa branca – Tem de fazer aquilo em que acredita, Cláudio. Eu o respeito por isso, e não ficarei em seu caminho. Espero que tenha o mesmo respeito por mim, porque não pretendo ficar parado.
_ Sabe que não podemos permitir que nada interfira até que eles possam lidar com problemas sozinhos, Alexandre – Cláudio replicou – O nosso papel...
_ O seu papel, Cláudio, pode ser esse! – Alexandre interrompeu – Acabo de redefinir o meu, para desempenhar melhor minha função, livrando os habitantes deste mundo de qualquer coisa que possa ficar entre eles e seu desenvolvimento. Em nome da nossa amizade, não se torne um empecilho.
_ Alexandre, meu amigo... Meu irmão...! Por favor, não faça isso!
Cláudio ficou parado de pé no Salão Branco por muito tempo depois da partida de Alexandre, muito depois que o som de metal dos adereços de sua bota deixara de se fazer ouvir. Às suas costas, o vento que entrava pela varanda parecia mais frio...
... e o tempo correu depressa em sua mente. A princípio, Alexandre conseguira o que queria e tomara para si o controle de muitas das raças do mundo, mesmo algumas tribos de humanos, antes que Cláudio resolvesse intervir. Incapaz de trazer seu amigo de volta à razão, Cláudio combateu Alexandre por dias seguidos, e as forças liberadas por ambos separaram continentes, derrubaram montanhas e destruíram a maior parte das hostes reunidas pelo renegado até que, ao fim, foi o terreno que cedeu sob eles quem decidiu a batalha. Tentando até o fim preservar a vida de seu amigo, Cláudio baixou a guarda num momento crucial e foi morto por um golpe certeiro de Alexandre.
Mas sua vitória custou-lhe caro. Cego pelo furor da batalha, ele não estava a salvo quando atacara, e fora arrastado pelo terreno que cedia, exausto e enfraquecido demais para resistir, e acabou sepultado por pouco menos de um milênio antes de tornar a despertar, seu corpo verdadeiro arruinado e sua essência corrompida demais para reconstruir-se como um dia fora. Incapaz de fazer-se notar ou sequer sobreviver por muito tempo sem um corpo físico sustentando seu espírito, Alexandre recriou sua carne com rocha e terra do terreno que o aprisionara por tanto tempo, e percebeu que por seus ferimentos e pela longa hibernação, parte de seu imenso poder se espalhara como sangue, imbuindo seu sepulcro com sua essência, de onde ele criou os primeiros Arcanos...
Este era Alexandre, aquele que fizera dela a arquimaga mais poderosa de seu mundo, o grande inimigo da Fortaleza de Melk. Ela podia vê-lo desabando, incapaz de resistir ao poder de Cristóvão, agora que a luta entre os dois o tinha enfraquecido. E ela, presa aos limites de seu corpo, não podia se soltar do arpão que a atravessava.
“M-muito bem então... Se não posso me... libertar...!”
Cristóvão não compreendeu, a princípio, ao ver Christabel guardar sua espada e agarrar o arpão de energia que brotava em seu peito. Estava cansada e enfraquecida o suficiente de toda a luta até ali para poder se libertar com poder apenas...
... e assim, ela puxou a prisão ainda mais para dentro de si mesma, abafando um gemido terrível de dor enquanto o fazia. Ele estava usando boa parte de seu poder considerável para mantê-la contida, e se tentasse qualquer coisa, ela se libertaria. Não era possível que ela se libertasse, não deveria ser.
Mas Christabel conseguira, ao se ferir ainda mais com o arpão, voltar-se para seu algoz. Não podia se soltar da corrente de energia enquanto ele não a soltasse, mas não estava restrita ou indefesa, não mais. E a fúria em seus olhos prometia retribuição a Cristóvão pela dor que lhe estava causando.
Christabel mergulhou sobre Cristóvão, enquanto ele percebia não ter outra escolha. Se não a soltasse e se protegesse, estaria morto quando ela o alcançasse. Ele acabara de chicotear para o lado com a corrente de energia que usara até então para detê-la e assumira sua verdadeira identidade quando a Rainha caiu sobre ele como uma bomba, e seu confronto levou a ambos para o interior da própria terra.
E ao mesmo tempo...
Zero mantinha a espada diante de si mesmo, andando pé ante pé e com a Marcadora erguida na mão esquerda, procurando pela menor indicação que fosse do alvo. Tur se mantivera afastado, no escuro, aproveitando-se das ligações entre as fendas abertas por sua magia para deslocar-se pelas sombras sem se expor a um tiro direto, e com tal habilidade que Zero não conseguia encontrá-lo com a visão ou qualquer outro sentido.
“Caricatura desgraçado... – ele pensou, movendo-se devagar para uma área melhor iluminada – Sai daí, anda! Eu não tenho a noite inteira...!”
E Tur também o estava espreitando com cautela. Já fora alvejado demais por Zero e o pai dele para não ter aprendido a respeitá-los, e mantinha a espada atrás de si mesmo para que ela não o denunciasse antes da hora. E procurava uma posição para atacar, enquanto percebia o que o outro estava fazendo.
“Se expondo, e procurando por mim. A luz tênue o revela como alvo, me instigando a atacar... e também pode me revelar, melhor que qualquer ambiente escuro onde se oculte. Além disso...”
Zero devia estar com pressa. Sabia que a batalha devia ser árdua para Christabel e pretendia fazer o que pudesse para ajudá-la, como prometera. Era louvável, mas também era o ponto fraco que o destruiria.
“Não está totalmente voltado para o duelo. Sua atenção continua ligada à presença dela. Eu vou vencer”
Saltou, impulsionando-se para frente como as asas da morte.
Zero ouviu o assobio no ar confinado quase um milésimo tarde demais, rodopiando para direita e rebatendo com sua própria espada.
O golpe de Tur foi detido, mas o movimento contrário partiu a espada de Zero em dois pedaços, e ele uivou de dor ao sentir o braço direito dobrar-se na direção do golpe, quebrando como ele sabia que aconteceria.
Ainda impulsionado para trás, agindo por puro reflexo, ele apontou a Marcadora e disparou no vulto de Tur, que recuava pelo corredor assim que atingira seu golpe.
Zero rolou pelo solo arenoso e abafou com dificuldade um novo gemido, esforçando-se para ficar de pé. O braço pendia numa posição terrível, seu visor se perdera no túnel e agora só tinha duas balas na Marcadora, e não teria como procurar pelo visor ou recarregar em hipótese alguma. Não naquela situação, e não cercado no escuro. O outro ia tirar vantagem, ele tinha certeza.
Tur estava deslizando para direita, aproveitando-se de fendas nas paredes dos corredores e procurando um novo ângulo pelo qual atacar. Zero talvez fosse imune a um ataque direto de magia, mas ele tivera uma idéia realmente luminosa para sua próxima aproximação, e sabia como prevenir-se contra aqueles tiros.
Zero ofegava, tentando a todo custo afastar a mente da dor no braço ferido. Sabia que, houvesse o que houvesse na próxima investida, seria o final do duelo. Lembrou-se do final de Faroeste Caboclo enquanto via a vida inteira passando diante de si mesmo, lembrou-se do pai e de tudo o que lhe ensinara e fizera por ele, e lembrou-se da mãe e do tempo em que pretendia compensar o que lhe fizera unindo-se a ela. E pela primeira vez, percebeu, não quis que acontecesse. Seus deveres não tinham acabado, não podia ir se reunir aos pais daquele jeito, com tanta coisa por fazer.
Um lampejo, um som parecido com o quebrar de um galho e Zero voltou-se instintivamente para esquerda, erguendo a Marcadora.
E um clarão intenso iluminou o corredor, e Zero fechou os olhos involuntariamente, atordoado e confuso enquanto ficava momentaneamente cego.
Tur exultou, lançando-se pelo corredor uma última vez, a espada em riste para o talho final. A visão de Zero acostumara-se à penumbra, uma luz potente e súbita devia bastar para cegá-lo por tempo suficiente. Agora, desnorteado e cego, ele era uma presa fácil.
E em meio à confusão, Zero ouviu a voz do pai em sua mente, no momento em que lhe dera sua arma favorita.
Ela praticamente atira sozinha. Aponte pro alvo, e a Marcadora encontra ele.
Vento, o mesmo assobio que ouvira antes, aproximando-se pelo corredor. E Zero sentiu... soube... que Tur estava quase sobre ele. Ergueu a pistola e disparou duas vezes.
Duas marteladas secas atingiram Ahl-Tur e ele sentiu que queimavam como o inferno, sentindo tamanha dor que levou segundos antes de perceber que estava no solo, rolando, e que largara a própria espada. Seus pensamentos estavam tumultuados, uma impressão de urgência e uma de inevitabilidade em conflito uma com a outra até que ele entendesse que estava pensando em amputar a parte atingida de si mesmo para preservar a própria vida, ao mesmo tempo em que atinava com o fato de que não conseguia mover o braço restante.
Os dois disparos de Zero o tinham atingido em cheio, o primeiro no cotovelo esquerdo e o segundo diretamente sobre o coração. Era onde a sensação de queimar era mais intensa. Era por onde seu espírito estava sendo drenado, juntamente com todo o seu poder, e em muito breve sequer seria capaz de gritar. Estava acabado.
“M-magnífico...! M-mas...”
Zero ainda sacudia a cabeça, curvado sobre o joelho direito, tentando clarear a visão e sem soltar a Marcadora, como se ela vazia ainda pudesse fazer alguma diferença se precisasse se defender. Mas ouvia o gemer do adversário e sabia em seu coração que vencera o duelo, e sua mente apenas começara a voltar-se para Christabel e quanto tempo ele desperdiçara ali embaixo quando algo o empurrou rudemente corredor adentro.
Ahl-Tur podia admitir derrota, mas não admitiria a vitória do outro. Levar Zero para o subsolo tivera uma última intenção. Caso, contra toda a lógica, ele fosse derrotado, poderia soterrar o cavaleiro de Christabel com um Rugido, um ataque de sua voz numa freqüência sonora tão alta que não podia ser ouvida pelos ouvidos de um humano, mas tinha poder e intensidade suficientes para trazer abaixo os túneis e paredes do subsolo.
E o último pensamento de Zero, enquanto sua visão clareava e percebia que todas as paredes próximas e parte do subsolo estavam caindo sobre ele, foi o motivo pelo qual ele precisava sair dali. Não podia terminar ainda... Ela ainda precisava dele...!