Achei q era uma boa (especialmente com a possibilidade não conseguir voltar até o fim do ano), colocar o final desse capítulo tbm. Pois é, o Velho Dirceu vai ralar pra arrancar aquele negócio da Christie. Rola ou não rola? E, afinal das contas... quem bolou aquilo, pra começar?
então, né... Vamos ler.
(...)
Zero e Melissa seguiram atrás de Dirceu, sem dizer palavra, mas entreolhando-se. E Daniel perguntou, enquanto fechava a porta atrás deles:
_ E agora?
_ Não é tão estranho, afinal – Sari cruzou os braços – Christabel é mesmo temperamental demais, e nada gentil. Mesmo Zero perde a paciência com ela de vez em quando, e o pai dele parece... não sei... mais forte, de alguma forma. O fato de andar com uma bengala o faz, de certa forma, parecer ainda maior.
_ Verdade – Laírton comentou com um sorriso leve – Acho que não precisamos nos preocupar com eles, Daniel. Ao invés, façamos nosso trabalho aqui em cima; nossos amigos lá embaixo terão muito trabalho, acredito, para terem que se importar com mais problemas.
Enquanto desciam a escadaria, Zero sentiu que o silêncio o perturbava um pouco, especialmente levando em conta como a operação seria difícil para Christabel, se ele podia arriscar um palpite. Para não mostrar nervosismo diante dela, e para quebrar o silêncio, ele perguntou o que lhe parecia meio tolo:
_ Pai, você tem certeza de que já tem gente atrás da Christie aqui, na Cidade Sucata? Estávamos meio que esperando por algo assim, mas que chegassem depois de nós...
_ Gente estranha chegando e saindo da Cidade Sucata não chega a ser novidade, menino – Dirceu abriu uma maleta na cabeceira da bancada, sempre agindo sem olhar para o filho ou para suas acompanhantes – Mas recentemente, me parece ter visto um trio ou quarteto rondando por aqui. Se não me engano, pelo menos dois deles passaram aí do lado agora, enquanto entramos.
_ Então, podem ser assassinos atrás da Christabel, Seu Dirceu? – Melissa perguntou.
_ Sei tanto quanto você, menina maga – e retirou uma braçadeira pouco mais larga que o bracelete original de Melissa da maleta, com um cabo curto pendendo dela – Tome, coloque isso. Este ‘Sifão’ devia ser um presente pra você juntar à pulseira que te dei antes de sair, mas agora pode ajudar um bocado nosso trabalho.
_ Hã? – Melissa obedeceu distraidamente, enquanto Dirceu conectava uma pequena presilha no extremo do cabo ao metal da pulseira original da maga – Um Sifão... de magia?
_ Sua pulseira atualmente absorve e armazena um feitiço que vá na sua direção, pra você usar mais tarde – e olhou para ela indagadoramente – Falar nisso, já teve chance de testar em campo?
_ Ah, já, obrigada! – Melissa deu um lindo sorriso ao velho – Acho que eu teria morrido enquanto vinha pra cá se não fosse por ela...
_ Fico feliz, então – Dirceu sorriu polidamente, mas voltou a explicar – Como eu dizia, o uso do Sifão deve ser armazenar mais magia. Veja, quatro Jóias Dragão de Fogo de tamanho médio no Sifão, encaixadas no metal. O cabo deve coletar o que você bloquear com a Braçadeira Escudo original, e essas jóias vão armazenar. Basicamente, deve funcionar como cinco feitiços reservas convencionais, ou coletar um único especialmente poderoso. Mas tente evitar isso; por motivos óbvios, não tive tempo nem condições de testar a última hipótese.
_ Com licença – Christabel cortou friamente – Achei que estávamos aqui para lidar com o meu problema, e não dar presentes.
_ Não me interrompa, moça – Dirceu rebateu com indiferença – Ao invés disso, deite-se aí e tente ficar quietinha. Vamos terminar mais depressa se você se comportar.
Christabel deitou-se emburrada numa bancada enorme no centro da sala, que parecia ter sido transformada temporariamente numa mesa de operações. Não gostou muito do aspecto dela; parecia dar-lhe uma espécie de aviso. Mas sua determinação em livrar-se da tiara sobrepujou seu senso de cautela. Era melhor que aquele velho arrogante soubesse o que estava fazendo, pois ela já não tinha muita paciência para mais abusos. Manteve-se olhando na direção do velho Dirceu com ar rancoroso, que ele não notou ou ignorou deliberadamente enquanto instruía Melissa.
_ Vou precisar que fique com as mãos posicionadas sobre Christabel, Melissa – Dirceu orientou, movendo a maga negra para que ficasse à cintura da Rainha – Sua mão direita sob a esquerda, e concentre-se. Imagino que durante a operação, algo da poderosa magia dela vai ‘vazar’; é melhor que esteja preparada para conte-la.
_ Ela não tem como conter meu poder – Christabel retrucou.
_ Discordo totalmente, Majestade – Dirceu rebateu – Pela forma utilizada para neutralizar seu poder, caso haja mesmo flutuação de energia, Melissa deve ser perfeitamente capaz de absorver.
_ Serei capaz de me conter sozinha – Christabel retorquiu, teimosamente.
_ Talvez, e talvez não – Dirceu acenou com a cabeça – Toques por outra pessoa no arcânio de sua tiara devem ser suficientes para causar-lhe dor intensa, o que por sua vez deve levar a reações involuntárias de seu corpo. Acredita realmente que seu poder não vai se manifestar também, mesmo que de forma inconsciente?
_ Não tem outro jeito de fazer isso, pai? – Zero perguntou, lutando para que a preocupação que sentia não ficasse evidente – Ou de fazer a Christie dormir com algum anestésico, antes de começar? Se você não vai só ficar tocando no metal...!
_ Ela não aceitaria, Zero. – Dirceu respondeu simplesmente, e Christabel acenou afirmativamente com a cabeça, o mesmo ar teimoso no rosto.
_ Se há de fato inimigos meus aqui, a última coisa de que vou precisar é uma droga que me adormeça por horas. Não, Mestre Dirceu, faça o que tiver que fazer então. Quero estar desperta.
_ Christie, mesmo acordada, você vai se desgastar – Zero insistiu, o semblante visivelmente preocupado – Sari, Daniel e Laírton tão lá em cima tomando conta, e eu garanto que eu e a Li podemos nos mexer se for preciso, também. Deixa meu pai te dar alguma coisa pra...
_ Pare de chatear, garoto – Dirceu interrompeu de mau modo – Que mania, foi a mesma coisa quando decidimos que Melissa ia com você; quem pensa que é pra ficar julgando o que as outras pessoas vão fazer ou não? Olhe para ela; Christabel já perdeu a paciência com tamanha demora!
Na verdade, a Rainha estava olhando com um semblante diferente para Zero. Não era exatamente impaciência; parecia mais com certa perplexidade. Mas ela tratou de aparentar que Dirceu estava certo, quando notou que o velho olhava para seu rosto.
_ Então... Comecemos de uma vez. Essa discussão é inútil.
Havia um sorriso estranho no rosto do velho Dirceu, do qual Christabel não gostou muito, quando ele acenou afirmativamente. Ao invés de dizer qualquer coisa, no entanto, ele ofereceu a ela o que parecia uma barra de plástico azul.
_ De acordo, Majestade. Por favor, segure isso entre os dentes. Vai ajuda-la a suportar a dor.
Ela o fitou em silêncio com ar de suspeita, e Dirceu insistiu, um sorriso resignado e impaciência no rosto.
_ Escute, entendo que não goste de mim ou dos meus modos; também não me agrado dos seus – ela olhou com mais suspeita ainda para ele – Mas, pouco me importa o que pense, não me dá prazer algum ver o sofrimento de quem quer que seja. E essa operação será muito dolorosa para você, pouco importa o quanto seja durona. Se acredita que pode suportar, bom para você. Mas não tem nada a perder aceitando ajuda, tem?
Christabel considerou o que lhe fora dito. Era obrigada a admitir que fazia sentido. Não gostava das atitudes do velho Dirceu, mas ele lembrava muito o filho para não se preocupar com alguém que estivesse ajudando. Só lhe restava uma última dúvida.
_ Um tecido seria melhor para abafar minha voz então.
_ Mas vai ter dificuldade pra respirar, Alteza – Dirceu replicou – E acho que você vai inspirar e expirar muito, enquanto tenta não gritar. Vai precisar de todo o ar que puder, e vai me atrasar muito se sufocar no processo.
Sem maiores queixas, Christabel aceitou morder a barra de plástico, sob o olhar preocupado de Zero. E o rapaz pareceu despertar quando o pai disse:
_ Anda, Zero, pára de ficar sonhando. Vou precisar que mantenha Christabel imóvel, tanto quanto puder. Ela vai se debater muito enquanto tento remover a tiara, e vai ser difícil trabalhar se ela se mover. Acha que consegue manter ela parada?
Christabel tentou dizer que era perfeitamente capaz de se manter imóvel sem qualquer auxílio, mas a barra de plástico a atrapalhava e ela foi forçada a ficar quieta. Olhou novamente com suspeita para Dirceu, imaginando que ele também fizera aquilo de propósito. Podia ser verdade. E Zero disse que sim.
_ Só que... O Dr. Matogrosso não podia dar uma força, pai? Ele é tão bom nisso quanto você, e se os dois estivessem juntos... Quero dizer, se desse pra ser menos doloroso, ia ser melhor...
Dirceu deu um sorriso leve e carinhoso para o filho, mas acenou novamente com a cabeça.
_ Eu pensei seriamente em chamar o João, sim, Zero. Mas ia chamar atenção demais, e precisamos ser discretos aqui. Coroando tudo, não acho que a Rainha gostaria de mais gente do que fosse estritamente necessário a par da situação dela. Não é isso, Majestade?
O olhar de Christabel para os dois dizia tudo. Dirceu permitiu-se um último olhar para o filho, perguntando-se se aquilo era algo que o menino tinha puxado da mãe ou dele. Talvez fosse dele próprio; Célia era uma pesquisadora da Cidade Avançada quando tinham se conhecido, e na época havia uma espécie de barreira social entre as duas cidades irmãs. Parecia ser próprio dos homens da família...
_ Vamos começar logo com isso, então. Não precisa olhar se não quiser, Christabel. E, Melissa, a postos.
Christabel quis manter sua atenção tanto quanto pôde ao que estava acontecendo, mas logo descobriu que não poderia. Logo depois que a ponta da chave de fenda de Dirceu tocou o encaixe da primeira lasca de Dragão de Fogo em sua tiara.
Um vento forte começou a soprar de lugar nenhum lá fora, arrastando poeira do solo diretamente nos olhos das pessoas nas ruas, enquanto nuvens pesadas começaram a acumular-se sobre a Cidade Sucata, forçando Escavadores e visitantes a procurarem abrigo, e despertando a curiosidade dos vigias da Cidade Avançada, pouco mais ao sul.
Em menos de cinco minutos havia relâmpagos e trovões distantes no horizonte, enquanto o dia pareceu tornar-se noite. Melissa gritou algo, que Christabel não conseguiu compreender; tudo parecia estar chegando até ela através de uma névoa espessa, onde tudo o que ela podia notar com clareza era a dor que penetrava em seu crânio como uma faca. Era como se a chave de fenda de Dirceu estivesse tentando arrancar não uma lasca de jóia em sua tiara, mas sim a parte superior de seu crânio. Pouco importava o quanto quisesse manter sua atitude, era inevitável que se contorcesse e só a muito custo conseguiu ficar em silêncio, apesar de tudo.
Frascos de vidro estavam explodindo por toda a volta no porão de Dirceu; as janelas no andar de cima também estremeceram, e algumas trincaram-se sozinhas. Objetos das estantes do porão e dos andares de cima caíam ao chão. Outra vez ela pareceu ouvir gritos, de Dirceu ou Melissa, ela já não sabia muito bem. A dor continuava, um pulso de agonia que a torturava... quando então percebeu outra sensação: mãos firmes agarrando seus braços, mantendo-a parada onde estava.
Christabel abriu seus olhos. Zero estava agarrado a ela, olhando diretamente para seu rosto. Seus olhos também estavam tensos, como se estivesse sentindo dores, e um gemido baixo escapava por entre seus dentes cerrados. O que espantou a Rainha, no entanto, foi ver que os ferimentos tratados por Laírton estavam sangrando como se tivessem sido abertos naquele momento. Mais ainda, ela podia ver que a camisa dele estava banhada em sangue também, até onde podia enxergar, e sabia que aquilo não podia ter sido apenas dos ferimentos que ele conseguira durante sua chegada à cidade.
Soube instintivamente que Zero estava partilhando as dores com ela, de alguma forma. Não fazia muito sentido, mas nada fazia qualquer sentido, tampouco. Seu mundo era apenas dor, e a única coisa além da dor que conseguia perceber era Zero, que ela sabia que poderia soltar-se dela no momento em que quisesse, e poupar a si mesmo daquele sofrimento. Ela via cortes abrindo-se nele, e sabia que aquilo devia ser muito doloroso; viu que ele parecia lutar com o impulso de afastar-se, dominando-se. Ele não ia soltá-la.
Christabel não saberia dizer quanto tempo aquilo durara. Podiam ter sido apenas minutos, ou horas. Não tinha a menor noção ainda do caos e desordem que sua agonia causara nos arredores. Só soube, com toda a certeza, que Zero permanecera com ela até o último instante, quando sua consciência finalmente rendeu-se e o mundo todo desapareceu de sua percepção. Parecera ouvir o velho Dirceu e Melissa dizerem mais alguma coisa, mas fora vago demais para que entendesse, ou sequer soubesse com certeza se de fato os ouvira.
_ E agora?
_ Não é tão estranho, afinal – Sari cruzou os braços – Christabel é mesmo temperamental demais, e nada gentil. Mesmo Zero perde a paciência com ela de vez em quando, e o pai dele parece... não sei... mais forte, de alguma forma. O fato de andar com uma bengala o faz, de certa forma, parecer ainda maior.
_ Verdade – Laírton comentou com um sorriso leve – Acho que não precisamos nos preocupar com eles, Daniel. Ao invés, façamos nosso trabalho aqui em cima; nossos amigos lá embaixo terão muito trabalho, acredito, para terem que se importar com mais problemas.
Enquanto desciam a escadaria, Zero sentiu que o silêncio o perturbava um pouco, especialmente levando em conta como a operação seria difícil para Christabel, se ele podia arriscar um palpite. Para não mostrar nervosismo diante dela, e para quebrar o silêncio, ele perguntou o que lhe parecia meio tolo:
_ Pai, você tem certeza de que já tem gente atrás da Christie aqui, na Cidade Sucata? Estávamos meio que esperando por algo assim, mas que chegassem depois de nós...
_ Gente estranha chegando e saindo da Cidade Sucata não chega a ser novidade, menino – Dirceu abriu uma maleta na cabeceira da bancada, sempre agindo sem olhar para o filho ou para suas acompanhantes – Mas recentemente, me parece ter visto um trio ou quarteto rondando por aqui. Se não me engano, pelo menos dois deles passaram aí do lado agora, enquanto entramos.
_ Então, podem ser assassinos atrás da Christabel, Seu Dirceu? – Melissa perguntou.
_ Sei tanto quanto você, menina maga – e retirou uma braçadeira pouco mais larga que o bracelete original de Melissa da maleta, com um cabo curto pendendo dela – Tome, coloque isso. Este ‘Sifão’ devia ser um presente pra você juntar à pulseira que te dei antes de sair, mas agora pode ajudar um bocado nosso trabalho.
_ Hã? – Melissa obedeceu distraidamente, enquanto Dirceu conectava uma pequena presilha no extremo do cabo ao metal da pulseira original da maga – Um Sifão... de magia?
_ Sua pulseira atualmente absorve e armazena um feitiço que vá na sua direção, pra você usar mais tarde – e olhou para ela indagadoramente – Falar nisso, já teve chance de testar em campo?
_ Ah, já, obrigada! – Melissa deu um lindo sorriso ao velho – Acho que eu teria morrido enquanto vinha pra cá se não fosse por ela...
_ Fico feliz, então – Dirceu sorriu polidamente, mas voltou a explicar – Como eu dizia, o uso do Sifão deve ser armazenar mais magia. Veja, quatro Jóias Dragão de Fogo de tamanho médio no Sifão, encaixadas no metal. O cabo deve coletar o que você bloquear com a Braçadeira Escudo original, e essas jóias vão armazenar. Basicamente, deve funcionar como cinco feitiços reservas convencionais, ou coletar um único especialmente poderoso. Mas tente evitar isso; por motivos óbvios, não tive tempo nem condições de testar a última hipótese.
_ Com licença – Christabel cortou friamente – Achei que estávamos aqui para lidar com o meu problema, e não dar presentes.
_ Não me interrompa, moça – Dirceu rebateu com indiferença – Ao invés disso, deite-se aí e tente ficar quietinha. Vamos terminar mais depressa se você se comportar.
Christabel deitou-se emburrada numa bancada enorme no centro da sala, que parecia ter sido transformada temporariamente numa mesa de operações. Não gostou muito do aspecto dela; parecia dar-lhe uma espécie de aviso. Mas sua determinação em livrar-se da tiara sobrepujou seu senso de cautela. Era melhor que aquele velho arrogante soubesse o que estava fazendo, pois ela já não tinha muita paciência para mais abusos. Manteve-se olhando na direção do velho Dirceu com ar rancoroso, que ele não notou ou ignorou deliberadamente enquanto instruía Melissa.
_ Vou precisar que fique com as mãos posicionadas sobre Christabel, Melissa – Dirceu orientou, movendo a maga negra para que ficasse à cintura da Rainha – Sua mão direita sob a esquerda, e concentre-se. Imagino que durante a operação, algo da poderosa magia dela vai ‘vazar’; é melhor que esteja preparada para conte-la.
_ Ela não tem como conter meu poder – Christabel retrucou.
_ Discordo totalmente, Majestade – Dirceu rebateu – Pela forma utilizada para neutralizar seu poder, caso haja mesmo flutuação de energia, Melissa deve ser perfeitamente capaz de absorver.
_ Serei capaz de me conter sozinha – Christabel retorquiu, teimosamente.
_ Talvez, e talvez não – Dirceu acenou com a cabeça – Toques por outra pessoa no arcânio de sua tiara devem ser suficientes para causar-lhe dor intensa, o que por sua vez deve levar a reações involuntárias de seu corpo. Acredita realmente que seu poder não vai se manifestar também, mesmo que de forma inconsciente?
_ Não tem outro jeito de fazer isso, pai? – Zero perguntou, lutando para que a preocupação que sentia não ficasse evidente – Ou de fazer a Christie dormir com algum anestésico, antes de começar? Se você não vai só ficar tocando no metal...!
_ Ela não aceitaria, Zero. – Dirceu respondeu simplesmente, e Christabel acenou afirmativamente com a cabeça, o mesmo ar teimoso no rosto.
_ Se há de fato inimigos meus aqui, a última coisa de que vou precisar é uma droga que me adormeça por horas. Não, Mestre Dirceu, faça o que tiver que fazer então. Quero estar desperta.
_ Christie, mesmo acordada, você vai se desgastar – Zero insistiu, o semblante visivelmente preocupado – Sari, Daniel e Laírton tão lá em cima tomando conta, e eu garanto que eu e a Li podemos nos mexer se for preciso, também. Deixa meu pai te dar alguma coisa pra...
_ Pare de chatear, garoto – Dirceu interrompeu de mau modo – Que mania, foi a mesma coisa quando decidimos que Melissa ia com você; quem pensa que é pra ficar julgando o que as outras pessoas vão fazer ou não? Olhe para ela; Christabel já perdeu a paciência com tamanha demora!
Na verdade, a Rainha estava olhando com um semblante diferente para Zero. Não era exatamente impaciência; parecia mais com certa perplexidade. Mas ela tratou de aparentar que Dirceu estava certo, quando notou que o velho olhava para seu rosto.
_ Então... Comecemos de uma vez. Essa discussão é inútil.
Havia um sorriso estranho no rosto do velho Dirceu, do qual Christabel não gostou muito, quando ele acenou afirmativamente. Ao invés de dizer qualquer coisa, no entanto, ele ofereceu a ela o que parecia uma barra de plástico azul.
_ De acordo, Majestade. Por favor, segure isso entre os dentes. Vai ajuda-la a suportar a dor.
Ela o fitou em silêncio com ar de suspeita, e Dirceu insistiu, um sorriso resignado e impaciência no rosto.
_ Escute, entendo que não goste de mim ou dos meus modos; também não me agrado dos seus – ela olhou com mais suspeita ainda para ele – Mas, pouco me importa o que pense, não me dá prazer algum ver o sofrimento de quem quer que seja. E essa operação será muito dolorosa para você, pouco importa o quanto seja durona. Se acredita que pode suportar, bom para você. Mas não tem nada a perder aceitando ajuda, tem?
Christabel considerou o que lhe fora dito. Era obrigada a admitir que fazia sentido. Não gostava das atitudes do velho Dirceu, mas ele lembrava muito o filho para não se preocupar com alguém que estivesse ajudando. Só lhe restava uma última dúvida.
_ Um tecido seria melhor para abafar minha voz então.
_ Mas vai ter dificuldade pra respirar, Alteza – Dirceu replicou – E acho que você vai inspirar e expirar muito, enquanto tenta não gritar. Vai precisar de todo o ar que puder, e vai me atrasar muito se sufocar no processo.
Sem maiores queixas, Christabel aceitou morder a barra de plástico, sob o olhar preocupado de Zero. E o rapaz pareceu despertar quando o pai disse:
_ Anda, Zero, pára de ficar sonhando. Vou precisar que mantenha Christabel imóvel, tanto quanto puder. Ela vai se debater muito enquanto tento remover a tiara, e vai ser difícil trabalhar se ela se mover. Acha que consegue manter ela parada?
Christabel tentou dizer que era perfeitamente capaz de se manter imóvel sem qualquer auxílio, mas a barra de plástico a atrapalhava e ela foi forçada a ficar quieta. Olhou novamente com suspeita para Dirceu, imaginando que ele também fizera aquilo de propósito. Podia ser verdade. E Zero disse que sim.
_ Só que... O Dr. Matogrosso não podia dar uma força, pai? Ele é tão bom nisso quanto você, e se os dois estivessem juntos... Quero dizer, se desse pra ser menos doloroso, ia ser melhor...
Dirceu deu um sorriso leve e carinhoso para o filho, mas acenou novamente com a cabeça.
_ Eu pensei seriamente em chamar o João, sim, Zero. Mas ia chamar atenção demais, e precisamos ser discretos aqui. Coroando tudo, não acho que a Rainha gostaria de mais gente do que fosse estritamente necessário a par da situação dela. Não é isso, Majestade?
O olhar de Christabel para os dois dizia tudo. Dirceu permitiu-se um último olhar para o filho, perguntando-se se aquilo era algo que o menino tinha puxado da mãe ou dele. Talvez fosse dele próprio; Célia era uma pesquisadora da Cidade Avançada quando tinham se conhecido, e na época havia uma espécie de barreira social entre as duas cidades irmãs. Parecia ser próprio dos homens da família...
_ Vamos começar logo com isso, então. Não precisa olhar se não quiser, Christabel. E, Melissa, a postos.
Christabel quis manter sua atenção tanto quanto pôde ao que estava acontecendo, mas logo descobriu que não poderia. Logo depois que a ponta da chave de fenda de Dirceu tocou o encaixe da primeira lasca de Dragão de Fogo em sua tiara.
Um vento forte começou a soprar de lugar nenhum lá fora, arrastando poeira do solo diretamente nos olhos das pessoas nas ruas, enquanto nuvens pesadas começaram a acumular-se sobre a Cidade Sucata, forçando Escavadores e visitantes a procurarem abrigo, e despertando a curiosidade dos vigias da Cidade Avançada, pouco mais ao sul.
Em menos de cinco minutos havia relâmpagos e trovões distantes no horizonte, enquanto o dia pareceu tornar-se noite. Melissa gritou algo, que Christabel não conseguiu compreender; tudo parecia estar chegando até ela através de uma névoa espessa, onde tudo o que ela podia notar com clareza era a dor que penetrava em seu crânio como uma faca. Era como se a chave de fenda de Dirceu estivesse tentando arrancar não uma lasca de jóia em sua tiara, mas sim a parte superior de seu crânio. Pouco importava o quanto quisesse manter sua atitude, era inevitável que se contorcesse e só a muito custo conseguiu ficar em silêncio, apesar de tudo.
Frascos de vidro estavam explodindo por toda a volta no porão de Dirceu; as janelas no andar de cima também estremeceram, e algumas trincaram-se sozinhas. Objetos das estantes do porão e dos andares de cima caíam ao chão. Outra vez ela pareceu ouvir gritos, de Dirceu ou Melissa, ela já não sabia muito bem. A dor continuava, um pulso de agonia que a torturava... quando então percebeu outra sensação: mãos firmes agarrando seus braços, mantendo-a parada onde estava.
Christabel abriu seus olhos. Zero estava agarrado a ela, olhando diretamente para seu rosto. Seus olhos também estavam tensos, como se estivesse sentindo dores, e um gemido baixo escapava por entre seus dentes cerrados. O que espantou a Rainha, no entanto, foi ver que os ferimentos tratados por Laírton estavam sangrando como se tivessem sido abertos naquele momento. Mais ainda, ela podia ver que a camisa dele estava banhada em sangue também, até onde podia enxergar, e sabia que aquilo não podia ter sido apenas dos ferimentos que ele conseguira durante sua chegada à cidade.
Soube instintivamente que Zero estava partilhando as dores com ela, de alguma forma. Não fazia muito sentido, mas nada fazia qualquer sentido, tampouco. Seu mundo era apenas dor, e a única coisa além da dor que conseguia perceber era Zero, que ela sabia que poderia soltar-se dela no momento em que quisesse, e poupar a si mesmo daquele sofrimento. Ela via cortes abrindo-se nele, e sabia que aquilo devia ser muito doloroso; viu que ele parecia lutar com o impulso de afastar-se, dominando-se. Ele não ia soltá-la.
Christabel não saberia dizer quanto tempo aquilo durara. Podiam ter sido apenas minutos, ou horas. Não tinha a menor noção ainda do caos e desordem que sua agonia causara nos arredores. Só soube, com toda a certeza, que Zero permanecera com ela até o último instante, quando sua consciência finalmente rendeu-se e o mundo todo desapareceu de sua percepção. Parecera ouvir o velho Dirceu e Melissa dizerem mais alguma coisa, mas fora vago demais para que entendesse, ou sequer soubesse com certeza se de fato os ouvira.