Então, né... Hora de continuar.
E hora de apresentar gente nova, tbm...
(...)
Havia um homem alto parado lá. Apoiado num cajado de madeira maciça, semelhante a uma cruz, um crucifixo grande pendurado em seu pescoço e meio misto na barba longa. Sua túnica um dia podia ter sido branca, mas estava suja e rasgada demais para que ele parecesse qualquer coisa além de um mendigo maltrapilho. A voz rouca e raspada soou novamente, com desprezo.
_ Idiota... Mortal imbecil, acaso o álcool embotou completamente seu raciocínio? Por quê busca pela própria morte?
_ A morte não é motivo para temores, criatura – Irmão Laírton aproximou-se um passo, o cajado firme em sua mão direita e de fato, pareceu a Zero, ele não parecia ter medo de coisa alguma – É apenas mais uma viagem, uma trilha a ser seguida por tudo aquilo que é abençoado com o dom da vida. No momento certo, eu pretendo seguir meu caminho, como o fazem todas as criaturas de Nosso Senhor. Mas não hoje. Hoje... – e ergueu o cajado na direção do espantalho – é você quem vai partir.
Os pássaros negros farfalharam suas asas no chão, erguendo-se aos ares aos poucos para esvoaçar ao redor do espantalho, que ergueu suas mãos. Era estranho ver aquele boneco de palha se movendo. Mais ainda, perturbador; a cena parecia algo saído de um pesadelo, principalmente para Melissa. Mas o Religioso continuava avançando, lenta e tranqüilamente, como se nada no mundo pudesse feri-lo.
_ Sirvo a poderes nascidos na antiguidade do mundo, sacerdote – disse a voz rachada – Poderes que já eram grandes, e antigos, quando vocês humanos ainda se escondiam da noite, achando que era algo demoníaco. O que você acha que tem então, criança humana, que possa salva-lo de mim?
E acenou para frente, as aves desmortas abrindo o círculo e avançando contra a figura do Religioso.
Laírton apanhou o crucifixo de madeira em seu pescoço e o estendeu diante de si, e uma luz fulgurante cintilou; parecendo espantar a escuridão á sua volta. Mais ainda, um vento poderoso pareceu surgir da cruz, lançando mais penas e também as gralhas de volta contra o espantalho, que cobriu sua cabeça de pano, recuando vários passos diante da luz. Aquilo foi muito rápido, mas quando terminou, havia penas caindo por toda a volta na rua, e um campo circular livre ao redor de Laírton, sustendo seu crucifixo diante de si e sorrindo ao responder:
_ Apenas ‘Fé’. Não sei a que poderes você serve, criatura da escuridão... – Laírton agora andava resoluto na direção do espantalho, o crucifixo estendido diante de si – Não sei se são mais antigos do que a humanidade, se existiam antes do mundo... nem nada disso me importa! O que sei é que sua existência é uma profanação, uma paródia de vida que ofende a Nosso Senhor! Parta daqui! Volte para o vazio que o gerou, e nunca mais macule nosso mundo com sua presença!
O espantalho recuou, vacilando em suas pernas como se de repente não as controlasse. Um passo para trás, dois... e então ele realmente deixou de controlar as próprias pernas, tombando para trás e se desmanchando enquanto a palha do seu corpo parecia ser soprada para trás, deixando apenas uma armação de madeira e arame enquanto mesmo as roupas pareciam se desintegrar aos poucos. A cabeça de pano com um rosto tracejado também se desmanchou aos poucos, num processo cada vez mais rápido, e apenas aos olhos de Laírton e Melissa, uma sombra escura ergueu-se subitamente dos restos do espantalho. Uma sombra que parecia um grande morcego, que agitou-se para o alto e afastou-se um pouco, antes de voltar pesadamente na direção do Religioso, como se fosse uma grande ave de rapina.
E Laírton largou o crucifixo sobre seu peito e girou o cajado sobre sua cabeça, com as duas mãos, atingindo a sombra quando ela o alcançaria, espalhando-a por toda a volta como se fosse feita de cinzas desde o princípio, com o som surdo de um guincho agudo soando por toda a volta. Mesmo Daniel e Zero, embora não pudessem ver o que de fato tinha acontecido, sentiram de repente que a aflição passara. O céu escuro parecia clarear aos poucos... e os desmortos, que tinham começado a cambalear também na direção do Religioso, tombaram onde estavam como marionetes sem fios, levantando poeira.
Zero sorriu, guardando a pistola. Mais uma vez, o que dissera a Christabel mostrava estar correto: aparências podiam enganar. Voltando-se para os amigos, ele perguntou:
_ Tudo bem Li? Dan? Alguém ferido?
_ Não... Acho que não, Zero – Daniel voltou-se para Melissa, que acenou que não com a cabeça.
_ Tudo bem, Zero. Mas da próxima vez, sem zumbis tá bom?
_ Tudo bem, irmãzinha – ele riu – Vou pedir pro próximo espantalho que cruzar nosso caminho pra deixar os mortos quietos, e pra lutar direito com a gente. Também achei essa luta de lascar.
_ Nem brinque com isso, Zero – Daniel pediu – O Religioso nos auxiliou com essa criatura desta vez, mas se tivermos que lutar com mais deles...
_ Não tô querendo chatear você, Daniel – Zero retrucou sério – mas eu acho que é só uma questão de tempo. Viu, aquela coisa procurava pela Christie. E pelo que disse, não foi por obra de nenhum inimigo dela na fortaleza.
_ Era muito poderoso – Melissa acenou afirmativamente com a cabeça – Vocês viram aquela criatura que saiu do espantalho? A que o Religioso esmagou com o cajado?
Daniel e Zero fizeram que não com a cabeça.
_ Então era isso o que ele tava fazendo quando girou a cruz? – perguntou Zero – Bem que eu achei estranho.
_ Acha mesmo que virão outros como ele, Zero? – Daniel questionou, e o amigo confirmou com a cabeça.
_ Eu te disse que a gente ia precisar de ajuda, não disse? Ainda bem que você resolveu vir.
_ Mas como...
_ Er, com licença...
Uma voz jovial veio de baixo, da base da casa onde tinham subido. Irmão Laírton olhava para o alto, com um sorriso um pouco sem jeito, quase se desculpando por interrompe-los.
_ Estão todos bem aí em cima? Nenhum de vocês foi ferido pelos desmortos?
_ Ah, Irmão Laírton! – Zero sorriu – Obrigado pela ajuda! A situação tava ficando feia pra nós.
_ Fico feliz de ter podido ajudar, então – ele acenou gravemente a cabeça em saudação – mas, você parece me conhecer. Já nos vimos antes?
_ Ah, espera um pouco aí – Zero desceu de onde estava, saltando sobre os caixotes que usara como apoio para subir no telhado, e depois estendeu a mão para o Religioso – Desculpa, é falta de educação da minha parte. Zero, da Cidade Sucata, passando em visita aqui na sua cidade. Prazer em conhece-lo, especialmente numa hora de dificuldade como essa.
_ O prazer é meu – Laírton inclinou a cabeça respeitosamente, voltando os olhos para o casal olhando lá de cima – e fico feliz por ter sido útil. Mas, se me permitem uma pequena indiscrição, o que fizeram para atrair uma atenção tão macabra? Espectros raramente atacam à luz do dia, e muito mais raramente o fazem de forma tão ostensiva.
Daniel descera primeiro, recebendo Melissa nos braços quando ela também saltou, e os dois olharam com admiração para o Religioso. Zero, no entanto, parecia intrigado.
_ Espectro...? Aquilo não era só um espantalho metido à besta?
_ Dificilmente, rapaz – Laírton sorriu discretamente – Posso explicar a situação com detalhes, mas... acredito que seria melhor se nos retirássemos daqui. Não sei quanto a vocês, mas agora que já impedi a profanação destas pobres almas... não pretendo ser responsável por sepultá-los uma segunda vez.
Ele olhava para os corpos mais e menos recentes tombados no solo e Melissa, que já estava descendo dos braços de Daniel, gritou e saltou sobre ele novamente, e o jovem cavaleiro ficou tremendamente ruborizado. E Zero concordou.
_ Boa! Escuta, se conhecer um lugar discreto onde conversar, eu te pago uma rodada de vinho! Combinado?
_ Jovem Mestre Zero – Laírton fez uma educada reverência – esta foi provavelmente a melhor oferta que tive em semanas. Sim, pela Trindade, eu sei onde podemos conversar! Basta que me sigam, meus amigos!
_ Tá, tudo bem – Zero estava achando engraçado olhar para o rosto vermelho de Daniel e Melissa, especialmente porque a moça não fazia sinal de descer enquanto ainda estivessem próximos dos corpos tombados – Só não me chama de ‘Mestre’, tá bom? Depois eu te explico...