XXXIV – Távola Redonda
Apesar do estoque limitado de
comida – levando em conta que Maddock vivia sozinho – eles conseguiram um café
da manhã razoável, onde o anfitrião fazia questão de saber tudo o que se
passara até então.
_ Afinal de contas, se eu vou
ajudar vocês nessa roubada...
_ Espera um pouco, quem foi que
pediu a sua ajuda? – Freya perguntou exasperada, e Maddock continuou como se
ninguém o tivesse interrompido.
_ ... é melhor me contarem como
foi que isso começou. Tão atrás de vocês? Quem? Como? Onde? Por que? E como é
que eles se chamam...?
_ Mad, sem surtar – Zero
retrucara com ar vazio ao ver a confusão de todos e o incômodo de Christabel e
Freya – A gente te conta tudo, claro; a Tata também precisa saber como é que
ela veio cair de pára-quedas nessa história toda. Mas vai precisar de muita
coisa pra beber, que falar demais dá sede.
_ Tá me estranhando, jerico? –
Maddock tornou a bater na testa de Zero – Vou chamar vocês pra falar sem trazer
nada pra molhar a garganta? Vão se ajeitando ali na sala, eu preparei uma mesa
pra nós, é só ir levando o grude.
_ ‘Grude’...? – Daniel e Melissa
olharam de um para o outro, e Christabel suspirou, parecendo cansada. Não sabia
se estava à altura de suportar tudo outra vez, numa versão ainda mais abusada
do Zero original. Se até o que conhecia com freqüência tratava de conter o
amigo...
Sua mão instintivamente procurou
o punho da espada enquanto a Rainha se voltou, sentindo um olhar hostil sobre
si. Os demais estavam levando travessas de comida e bebida para a sala e ela
ficara sozinha com Sari, que olhava para ela em silêncio e com uma fisionomia carregada.
Christabel não era tola, sabia do que se tratava. E não tinha nada a dizer.
Os olhos de Sari mantiveram-se
sobre os de Christabel por mais um instante, um longo instante de silêncio,
antes que a caçadora se pronunciasse.
_ Ele escolheu você. E, ao contrário
do que imaginei, você o aceitou.
Novamente, não havia nada a
dizer. Isso só dizia respeito a duas pessoas, e nenhuma delas era a caçadora. E
Sari não parecia esperar resposta, tampouco.
_ Faça por merecer, Christabel.
Ou nem todo o seu poder vai salvá-la de mim.
Era tudo o que havia a dizer, ao
que parecia; a caçadora foi para a sala onde os demais estavam se reunindo, e
não se deteve mesmo quando Zero veio à cozinha, olhando com alguma preocupação
para a outra enquanto se afastava.
_ Christie, o que foi? A Sari
tava meio estranha... Tá tudo bem?
Christabel sorriu para ele, de
forma que era ao mesmo tempo misteriosa e alegre.
_ Nada importante ou inesperado.
Vamos.
A assim chamada ‘mesa’ que
Maddock dissera ter preparado era na verdade uma chapa metálica redonda de
tamanho considerável, tomando boa parte do diâmetro da sala, e sua altura só
fazia dela uma mesa adequada porque os assentos eram almofadas no chão. E
parecia que Freya estivera reclamando quanto àquilo.
_ ... já comi em lugares piores,
claro, mas eu pensei que ele tinha dito mesa!
_ E no entanto – comentou Laírton
com alguma admiração – é sem dúvida muito espaçoso. O que dizem, Melissa e
Daniel?
_ ... Olha, com sinceridade –
Melissa olhou para Freya como quem pedia desculpas – eu até concordo com você
que isso não é bem uma mesa, mas vai ser a primeira vez em dias que dá pra a
gente comer sem se preocupar com ninguém nos perseguindo, nem qualquer surpresa
indesejada. Talvez seja por isso, mas eu estou me sentindo muito à vontade...
Dan?
_ Estava esperando que dissesse,
Mel – Daniel acenou afirmativamente, com um sorriso leve – Sou um soldado de
Melk; vivemos nossas vidas sempre em alerta, prontos pra interromper o que
estivermos fazendo para lutar. Sua Alteza Christabel e Mestre Maddock, no
entanto, garantem que não fomos seguidos até aqui, e... não sei, eu sinto o
mesmo em meu coração. É uma sensação muito estranha, estar em segurança. Mas
também muito agradável.
_ E, deve ter algum outro sentido
nisso – Zero tomou seu lugar numa almofada, e não passou despercebido a ninguém
que Christabel o seguira e sentou-se do lado dele.
_ O que quer dizer?
_ Bom, sabe, tem umas vezes em
que o Mad gosta de...
_ Ah, vejo que já estão todos à
minha espera.
Hermes Maddock se aproximava,
vindo do andar de cima. Sua aparência, no entanto, fez com que quase todos eles
franzissem o rosto, diante da estranheza. Havia um tapete de franjas
acolchoadas preso sobre seus ombros como uma capa real, uma braçadeira metálica
de suporte de encanamentos pintada de dourado sobre sua cabeça, como se fosse
uma coroa, e uma espada de punho dourado e cravejado de jóias em sua cintura.
Na verdade, como puderam ver pouco mais tarde, não passava de uma lâmina de
hélice serrada que ganhara um punho cromado enfeitado com pequenas lâmpadas
coloridas. O porte de Maddock e a leveza de seus movimentos enquanto se
aproximava devagar, no entanto, tinha algo de realeza em si, e Christabel
parecia visivelmente incomodada, mas Zero explicou em voz baixa:
_ Calma, Christie, que não é com
você. Como eu ia dizer, o Mad às vezes encarna algum personagem histórico mais
ou menos famoso, dependendo da ocasião. Pra ter colocado uma mesa redonda desse
tamanho aqui embaixo e ter vindo com essa pose, eu acho que hoje é...
_ Rei Arthur – Freya murmurou,
parecendo discretamente irritada – O maior rei de todos os tempos, segundo
contam as lendas, e que deve voltar no momento de maior necessidade de seu
povo... Como você se atreve...
_ Sem dúvida, dama cavaleiro –
MadArthur confirmou, com um aceno sereno de sua cabeça em direção à Dragonesa –
Num momento de grande necessidade me apresento, e fico grato em deparar com
almas de tamanha grandeza reunidas uma vez mais ao redor da Távola Redonda. É
uma grande honra conhecê-los.
Era curioso, sem dúvida, ver
Maddock agindo tão perfeitamente a caráter de seu personagem, mas havia uma
entre eles que não estava se divertindo ou se admirando em nada da figura
escolhida pelo anfitrião. Freya, ao contrário, sentia que sua paciência não
devia ser testada por mais tempo.
_ ‘Távola Redonda’? Isso é um
fecho metálico de alguma tubulação que você encontrou em seu ferro-velho! E
como se atreve a usar esse nome...?
_ A Távola é o que seus olhos
vêem, jovem dama – MadArthur respondeu com suavidade enquanto se sentava,
depondo a espada sobre os joelhos – Um local de encontro de almas nobres em uma
busca sagrada, quer haja grande esplendor e conforto ou acomodações humildes.
Lamento que não esteja de seu agrado.
_ Não é... O problema não é esse!
– Freya ruborizou por trás do visor que escondia seus olhos, respirou fundo e
tentou ser razoável – Sem querer faltar ao respeito, mas...
_ Então não o faça, minha dama –
MadArthur a interrompeu novamente, de forma ainda serena mas firme – Que essa
discussão termine, gentis viajantes. Sirvam-se! Não há muito a oferecer, mas
espero que esteja a seu contento. Comamos, bebamos, e falem-me a seu respeito
enquanto o fazemos.
Mais de um rosto voltou-se para
Zero, como que pedindo orientação, e ele sorriu.
_ Acho que posso começar falando
então, Mad... digo, Sua Alteza. As nossas histórias acabam se misturando,
mesmo... e acho que consigo ligar todas, aos poucos. No começo, éramos a Li e
eu...
E Zero falou do período de
treinamento de Melissa, uma jovem maga negra que ele com freqüência chamava de
sua ‘irmãzinha’, disposta a aprender também sobre a tecnologia perdida do mundo
e o que estava sendo reinventado pelas duas cidades, ao que Maddock sorriu
calorosamente em cumprimento à moça.
_ Eu a felicito pela iniciativa.
Ao que me consta, os envolvidos com tecnologia tendem a desprezar magia, e o
inverso também é verdade. É corajosa por ousar ir contra tais convenções, e eu
a honro por isso.
E ergueu o caneco do qual bebia,
deixando Melissa corada e muito sem jeito.
_ F-foi só... curiosidade, eu
sempre quis saber sobre o mundo antigo desde pequena. Mesmo tendo estudado
magia, a curiosidade não passou. Não foi nada demais...
_ E ainda assim, é nos atos
simples que reconhecemos as grandes pessoas – Maddock tornou a acenar sorrindo,
e então voltou-se para Zero.
_ Isso também explica, decerto, o
período em que fiquei sem visitas. Entendo. E o que os conduziu aos outros, meu
irmão?
_ Se me permite – Sari ergueu a
mão – eu gostaria de perguntar, se não for muito atrevimento, por que chama
Zero de ‘irmão’? Ele é mesmo...?
_ Não, Sari, magina! – Zero
pareceu escandalizado com a possibilidade – Eu nunca mais ia ter sossego, que é
isso?
_ Uma pergunta justa, bela dama –
MadArthur riu da reação do outro – e de forma alguma atrevida. Não, receio que
devo desapontá-los; em termos de nascimento, somos apenas bons amigos. Mas Seu
Dirceu sempre foi gentil comigo e cuidou de mim de forma paternal desde que meu
pai verdadeiro morreu; desde então, chamo de irmão a este tolo mancebo. Um
tanto reservado demais, infelizmente, mas há defeitos mais sérios na
personalidade de muitos.
_ ‘Reservado’...? – Daniel olhou
sem poder acreditar para Maddock, para Zero e de volta para o anfitrião, e
Laírton sorriu.
_ Pessoas diferentes têm visões
diferentes do mundo, caro Daniel. Por favor, prossiga Zero. De certa forma, o
que vai contar é novidade para a maioria de nós até certo ponto.
_ Tá. Então, Mad, continuando...
Ele falou da escavação onde ele e
Melissa tinham descoberto a jóia Dragão de Fogo de tamanho considerável que
seriviria para o Amplificador que Christabel ordenara que construíssem, e de
sua viagem para lá.
_ Christie tava lutando com um
monstro nervoso quando a gente chegou lá – o semblante de Zero escureceu um
pouco – Ele disse que se chamava... como é que era mesmo? Dentadura, um negócio
assim...
_ Ahl-Tur, Mestre dos Arcanos –
Christabel corrigiu ao lado de Zero com ar vazio – Ao menos enquanto conta a
história, você podia ser mais objetivo.
_ Receio que a objetividade
esteja além das capacidades de meu irmão, Majestade – MadArthur sorriu para
Christabel – Podem me esclarecer, então, que tipo de ser era o mencionado
Largura? O que é um Arcano, exatamente?
Apesar do ar aborrecido de Freya
e Christabel e do sorriso discreto de Laírton, que esperara por algo assim da
parte do anfitrião, foi Sari quem respondeu:
_ Em aparência, eles são como
humanos altos e com chifres curtos na cabeça, com asas de morcego semelhantes a
capas na extensão de seus braços, e dotados de muito poder em magia. Seus
corpos físicos e espíritos não estão exatamente unidos; enquanto os confrontei,
eu tive essa certeza. Mesmo que seus corpos sejam totalmente destruídos, os
espíritos ainda podem ser capazes de recriá-los em circunstâncias normais. São
adversários terríveis.
_ ... Eles não são muito fáceis
de derrubar não, Mad – Zero confirmou com um aceno de cabeça, parecendo sério e
erguendo a pistola de quatro tiros – Na primeira vez que topei com o fulano, eu
descarreguei essa criança aqui no bicho e ele continuou de pé e falando
besteira. Foi embora, mas nem parecia que eu tinha atingido algum ponto vital
do miserável.
_ Interessante – mesmo Maddock
parecia sério por um momento, mas sem qualquer outro comentário pediu que a
história continuasse, e Zero falou do dia seguinte, quando encontrara o velho
desconhecido que lhe dera os visores e que parecia saber tanto sobre máquinas,
descrevendo o funcionamento da Unicórnio apenas ao olhar para ela, e Melissa
tambem comentou:
_ O Zero ficou muito
impressionado com ele, sim, embora no dia eu tenha achado que era só um mendigo
viajante meio mal-educado...
_ O que, novamente, vem provar de
que as aparências podem enganar – Maddock concluiu imperturbável, aparentemente
alheio ao olhar que Christabel deu a ele e a Zero – E depois?
_ Foi quando rolou um torneio que
o pessoal da Fortaleza de Melk faz a cada seis meses, parece, pra escolher
líderes e soldados pra dar uma força nas lutas. Foi quando conhecemos o Daniel
aqui, que aproveitou pra dar uma cantada na Li.
_ O quê? – Daniel engasgou com o
café que estava tomando, ficando tremendamente corado enquanto Melissa, ao seu
lado, jogava um bolo em Zero – N-não, eu... digo, eu só quis... Se não fosse
o...
_ Está tudo bem, cavaleiro –
Maddock sorriu abertamente, acenando na direção de Daniel – Não é algo novo,
que bravos cavaleiros dediquem seus atos de bravura a belas donzelas. E você é
um cavaleiro, e Melissa é uma bela donzela. Muito apropriado.
Apropriado ou não, o assunto
deixou Daniel e Melissa mais corados ainda, e a maga negra jogou o pedaço
seguinte em Maddock, fazendo Zero gargalhar.
_ Parece que a Li já se acostumou
com você, Mad!
_ Sem dúvida – MadArthur limpou o
rosto com a mesma elegância de rei que demonstrara a manhã inteira, mas seu
riso estava além do personagem a julgar pela situação – Nada inesperado,
felizmente. E, antes de declararmos ‘guerra de comida’, quer por favor
continuar o relato, Zero?
_ É, então... Eu achei que ia ser
divertido participar da coisa toda também, dediquei a participação à Christie
aqui e...
Zero encolheu-se, parecendo lutar
para conter um gemido, enquanto Christabel parecia indiferente mas na verdade dera-lhe um beliscão. Com
lágrimas nos olhos pela dor reprimida, Zero prosseguiu:
_ ... e... então... eu participei
de algumas rodadas do torneio, até que a Sari aqui me venceu numa das finais.
Você me conhece, Mad; podia até ter vencido ela se fosse um torneio de tiro,
mas com espadas eu sou só mais ou menos. E a Sari é ótima.
Christabel pareceu imperturbável
a esse comentário, a não ser pela força com a qual mordeu a fatia de bolo que
apanhara na mesa. E Sari tomou conta do relato então.
_ A fortaleza tornou a ser
atacada naquela noite, e fui gravemente ferida... e salva pelo esforço de Zero,
Melissa e Daniel, logo depois que Christabel tornou a derrotar o Arcano. Eu...
Acho que devo dizer... estou sob a maldição de uma criatura sugadora de
energia, um tipo de vampiro... e eles puderam me ajudar cedendo de espontânea
vontade a energia das próprias vidas para repor aquela que eu tinha então
perdido...
Sari falava de cabeça baixa,
quase parecendo desculpar-se por sua condição incomum, e Christabel
estranhamente parecia ainda mais aborrecida, pois estava lembrando-se daquele
dia e da atitude de Zero. A longo prazo, ela sabia, era por aquela e outras
atitudes semelhantes que viera a gostar dele, mas nem isso fazia com que a
lembrança dele amparando a outra fosse mais simples de aceitar. À sua frente,
Freya parecia olhar para Sari com interesse e alguma preocupação, mas Maddock
tinha uma expressão diferente, parecida antes com piedade do que curiosidade.
_ Entendo que tenha reservas em
mencioná-lo, bela dama, e agradeço pela confiança implícita em nós ao nos
contar. Creio que já deve tê-lo percebido, seus companheiros viverão para
corresponder a tal confiança. E a partir deste dia, pode me contar entre eles.
Sari ergueu os olhos, e sorriu
para Maddock. Podia ser ainda mais insano do que o próprio Zero, mas também
tinha o desprendimento dele. Não a julgava pelo que se tornara, e ela era muito
grata por isso.
_ No dia seguinte, Christabel
ativou o Amplificador, e um tipo de barreira de magia cobriu toda a fortaleza.
E foi o que faltava para que um grupo de assassinos enviados pelo conselho de
Melk tentasse eliminar a Rainha, que não podia usar sua magia por ter uma tiara
de arcânio com jóias Dragão de Fogo incrustadas nela...
_ A coisa tava servindo como
barreira, Mad – Zero retomou a narrativa – Encurralaram a Christie e a gente
forçou a saída de lá, e eu sugeri que a gente viesse até a Sucata pra ver se
meu pai não tinha como tirar aquele troço; cê sabe, ainda não inventaram um
negócio que o Velho Dirceu não possa...
Mas então, Zero lembrou-se, isso
não era mais verdade. O Velho Dirceu fora capaz de manter sua reputação até o
fim, mas agora...
_ E nós paramos em Garland, onde
o Zero ia mandar uma carta pro Seu Dirceu explicando a situação – Melissa
lembrou, retomando a narrativa – Fomos pra ajudar ele, o Daniel e eu, e depois
de lutar com um grupo de assassinos de Melk... tivemos que enfrentar aquele
monstro...!
_ ‘Monstro’...? – Maddock
perguntou com gentileza, mostrando que não compreendera. E foi Laírton quem
explicou:
_ Um espantalho, animado por um
Espectro, um espírito sombrio dotado de grande poder das trevas. Aquele em
particular tinha o poder de reerguer os mortos e controlar animais. Quando
mesmo os animais mortos foram reerguidos, achei que deveria me intrometer na
luta, e foi oportuno que eu pudesse derrotar a criatura.
_ O Laírton tá sendo muito
modesto, Mad; sem ele, acho que eu, Daniel e a Mel tínhamos virado zumbis,
igualzinho os bichos que aquele espantalho metido a besta tava manipulando –
Zero cortou novamente – Contamos a história toda até ali pra ele, e desde
então, o Irmão aqui tem ajudado a gente ao longo do caminho.
_ De forma bem simples, dentro de
minhas capacidades apenas, Mestre Maddock.
_ Zero tem razão, Laírton –
Daniel sorriu para o Religioso – Está sendo muito modesto. Foi de grande ajuda
para nós quando tivemos que lutar contra a criatura Sáurio no caminho até a
Cidade Sucata.
_ É, e ia ter sido ainda pior pra
mim depois que a gente chegou na Sucata sem as orações do Laírton pra ajudar a
me curar – Zero acenou, erguendo um caneco na direção do amigo – Tinha uma
matilha de Ferais caindo em cima do grupo, e até o pessoal da Sucata chegar pra
dar uma força, eles tinham conseguido me tirar uns pedaços, Mad. Foi graças ao
Laírton aqui que eu tava pronto pra ajudar meu pai quando ele tentou tirar a
tiara da Christie.
_ Mas eu deveria ter auxiliado
vocês também nisso, amigo Zero – Laírton respondeu, de cabeça baixa – Você,
Melissa, seu pai e a Rainha talvez tivessem tido sucesso inicialmente se eu
tivesse...
_ O quê, adivinhado o que ia
acontecer? – Zero deu de ombros, enquanto MadArthur olhava de um para outro,
visivelmente confuso – Nah, você pode até trabalhar pra Deus, Laírton, mas não
é Ele. Não dá pra estar em todos os lugares, nem fazer tudo o que quiser. Você
não tinha como saber que a tiara da Christie tava bem protegida demais pra ser
arrancada como meu pai pensou em fazer no começo, e nem que ia doer tanto nela.
E, apesar do poder dela ter sido contido, Mad, ela ainda conseguia extravasar
um pouco em situações de tensão ou muita dor, e aquela foi uma delas.
“Meu pai tentou remover a tiara
arrancando dela as jóias Dragão de Fogo, sem imaginar que elas e o metal tinham
se ligado à Christie como se fossem ímãs. Dá pra imaginar, então, o quanto não
deve ter doído quando ele tentou usar chaves de fenda pra tirar as coisas de
lá. Depois de um tempo, ele percebeu que aquilo não ia funcionar e teve a idéia
de usar maquinário da Cidade Avançada pra sobrecarregar as jóias, mesmo que
fosse por pouco tempo, pra impedir elas de grudarem na Christie”.
_ Sim, é algo que Seu Dirceu
teria feito – MadArthur sorriu, pensativo – Se bem que me parece, a princípio,
improvável que os cientistas da Avançada concordassem em ajudá-lo.
_ Ah, você conhece meu pai:
sempre teve jeito pra convencer qualquer um de qualquer coisa – Zero deu de
ombros – O Dr. João Matogrosso, um velho amigo dele de quando minha mãe tava
viva, deu assessoria pra ele no novo plano. Claro, tivemos que subir até a
Avançada com a Christie, porque não ia ter como levar as máquinas pra Sucata.
_ Infelizmente, a dor de
Christabel e seu poder, que até então tinham sido difíceis de detectar aos que
a perseguiam, acabaram por atrair atenção indevida – Sari comentou sombriamente
– Eu pude pressentir a aproximação de todo o tipo de criatura desta região, e
algumas de mais além, e o propósito deles parecia óbvio.
_ Sari me falou a respeito, Mad,
e bolamos um plano. Foi onde o bicho pegou mesmo.
E Zero contou ao amigo sobre a
louca escapada pelo vale, e de terem atraído a atenção das feras e seres
míticos que perseguiam Christabel enquanto a própria Rainha permanecia na
Cidade Avançada, escondida pelas orações de Laírton e novamente se submetendo
aos cuidados do Velho Dirceu, desta vez mais bem sucedido.
_ Acho que posso falar por todo
mundo aqui – mostrou os amigos com o caneco erguido – quando digo que espero
nunca mais ter que lutar tanto de uma vez só na minha vida. A gente bateu de
frente com tudo o que você possa imaginar, Mad, e até algumas coisas que você
não tem como imaginar. O plano da Sari funcionou direitinho, os bichos vinham
pra cima dela, com o manto da Christie e o Escudo da Li fazendo parecer que ela
era Christabel enquanto a verdadeira ficava embaixo da proteção do Laírton. Os
doidos da Sucata resolveram sair pra ajudar a gente, apesar de eu ter falado
pra aquela mula do Éderson que era assunto nosso...
_ É o que verdadeiros amigos
fazem, meu irmão – MadArthur replicou, servindo-se de um gole generoso de seu
caneco – Acredito que você não tenha visto qualquer dos seus possíveis
desafetos indo em seu auxílio, ou estou enganado?
_ Nah, aí também é querer demais,
né Mad?
_ Eles também ficaram em risco,
passada a surpresa das criaturas – Sari lembrou – E Zero resolveu que devíamos
nos afastar tanto quanto pudéssemos, comprando mais tempo para Seu Dirceu e
Christabel. Ele voltou a motocicleta para longe e fugimos com mais velocidade
do que eu achava possível...
_ Heh... Minha Unicórnio – Zero
sorriu com carinho, erguendo o caneco em saudação à sua moto destruída – Mesmo
manobrando, consegui ficar mais rápido do que todos os outros e até achei que
dava pra escapar, uma hora. Se a gente tivesse conseguido chegar nas Minas
Antigas...! Faltou muito pouco, Mad.
_ Mas fomos interceptados por
Sáurio, que cortou nossa fuga – Sari remexeu no que estava bebendo – E não
tivemos como continuar fugindo quando os Nove Arcanos chegaram, liderados por
Ahl-Tur.
_ Nove deles? – mesmo Christabel
voltou-se para Zero e Sari, admirada. Pudera sentir a presença de outros que
deveriam ter acompanhado o Mestre dos Arcanos quando fora ao socorro de Zero e
Sari, mas não havia como imaginar quantos deles houvera. E Zero acenou que sim.
_ Deviam estar preparados pra te
enfrentar, Christie, com ou sem tiara. Meu pai tinha se preparado pra eles,
também – puxou uma das balas revestidas com jóias Dragão de Fogo e a exibiu –
Munição especial. Ele tava apostando que isso podia até com os Arcanos e, só
pra variar, acertou na mosca.
_ ... Mas não foi com isso que os
derrotou – Christabel olhou para Zero inquisitivamente, e Sari respondeu:
_ Eu não entendi quando Zero os
viu chegando e disse que precisávamos alcançar sua moto caída; não teríamos
como fugir deles. E ele a explodiu com tiros depois de abater dois Arcanos com
essas balas especiais; os estilhaços da explosão abateram outros quatro e
também fizeram o deserto desabar.
_ Não conseguimos alcançar a
entrada das Minas Antigas, mas já tínhamos chegado sobre um dos túneis delas –
Zero bebeu – Eu não tava esperando que o chão fosse ceder com a gente em cima,
sério mesmo. Achei que ia ficar por conta da Sari, não tava pondo muita fé de
que eu ia... bom, vocês sabem.
E deu de ombros. Não era preciso
explicar tanto.
_ Ao invés, o mundo embaixo de
nós despencou e aí sim eu falei ‘Danou. Pelo menos levei esses lazarentos
junto’. E não vi mais nada.
_ Apesar do desabamento, eu podia
perceber claramente os Arcanos sobreviventes – Sari murmurou, a voz baixa e
preocupada relembrando o momento – Também podia sentir a força da vida de Zero
diminuindo, e sabia que tinha que me apressar. Fui capaz de pegar um dos
sobreviventes de surpresa, mas fui forçada a confrontar os outros dois e,
confesso, estava começando a temer não conseguir alcançar Zero a tempo. Foi
então que Christabel apareceu, acompanhada pelos Sete Dragões.
_ É onde você entra nessa
história, eu presumo, Lady Tata? – Mad voltou-se para Freya com o mesmo ar
solene, embora o uso continuado do apelido não tenha passado despercebido.
_ Eu já disse a você...!
_ Ô Mad! – Zero entrou na
discussão e quase convencia com seu ar vazio e aborrecido – Se quer ouvir a
história direito, vê se pára de provocar a Tata, só um pouquinho? Vai demorar
pra caramba desse jeito! Então, de quem é a vez?
_ Acho que posso prosseguir, Zero
– Laírton continuou, sorrindo – Ahl-Tur levou sua companheira e desapareceu, e
pudemos levar Zero para ser tratado propriamente na Cidade Sucata, mas apenas
depois de tê-lo recuperado da inconsciência.
_ ... O mérito foi de Christabel,
até onde entendo – Freya comentou, olhando para a Rainha sentada ao lado de
Zero – Irmão Laírton e Sari o estavam curando, mas ele não reagia. Não entendo
bem como foi, mas parece... que ele esteve à beira da morte.
Christabel olhou ao redor,
surpresa, e corou e baixou os olhos quando deparou com o sorriso carinhoso de
Zero ao seu lado. Sari desviou o rosto e Melissa, aparentemente alheia ao que
estava acontecendo, prosseguiu:
_ Eu fiquei muito assustada
quando o Laírton falou dos ossos quebrados do Zero, e que mesmo depois de curar
ele ainda podia ter que ficar imóvel por alguns dias. Mas o Seu Dirceu falou
que tinha outro jeito, e levou todo mundo pra dentro de casa. Depois é que eu
fui entender porque.
_ Meus exoesqueletos – Maddock
murmurou, e Zero retomou a narrativa.
_ A idéia do meu pai, acho, era
despachar a gente pelo Velocípede e depois liberar a Tata com uma história
qualquer; cê sabe, a gente não deixa ninguém saber dos trilhos.
“Provavelmente ele ia convencer
os vigias da noite a jurarem que tinham visto nossa turma sair da Sucata de
madrugada; a gente faz isso o tempo todo, ninguém ia estranhar. Só que o tal do
Caradura pelo jeito não ficou machucado com a explosão da Unicórnio; ele atacou
enquanto o Velho Dirceu tava preparando os tubos de propelente pra a gente
chegar aqui. Eu ainda quis atirar; tinha munição na Marcadora. Mesmo com os
braços fracos, eu tenho certeza que ia conseguir atirar nele, Mad. Mas... daí,
eu vi meu pai, ele... ia quebrar a válvula, ia jogar a gente direto nos túneis
e não ia subir, não ia vir junto, e eu... a única coisa que eu podia fazer era
atirar, mas...”
Christabel pôs a mão gentilmente
sobre os lábios de Zero, fazendo-o silenciar. Maddock sem dúvida era capaz de
deduzir o restante sozinho. Daniel abraçou Melissa, que estava chorando
baixinho, e todos estavam olhando para Zero, subitamente sentindo a garganta
presa e sem conseguir continuar. E então, ouviram a voz de Maddock cantando
baixo e com voz clara:
Uma canção pra lembrar
Uma canção pra esquecer.
Você nunca vai saber o quanto eu tentei
Te deixar orgulhoso e honrar o seu nome,
Mas você nunca me disse adeus.
Eles se voltaram. Maddock estava de cabeça baixa,
mãos unidas sobre os joelhos e cantando de olhos fechados. Zero olhou para ele
como se reconhecesse a canção, e seus olhos ficaram marejados enquanto ele
também cantou, embora com a voz rouca:
Agora que você se foi,
lançando sombras do passado,
Você e todas as lembranças vão
restar.
Maddock ergueu os olhos e sorriu carinhosamente para
o amigo, acenando que sim com a cabeça e concluindo:
Não chore, ou sofra por mim.
Estarei esperando por você.
Não chore.
Anjos nunca desaparecem.
Vou tomar conta de você.
Te vejo depois.*
Mais de um dos companheiros também ficou comovido ao
ver Zero chorando, a cabeça no ombro de Christabel, que afagava seus cabelos.
Freya, no entanto, voltou-se para Maddock, e seu sorriso era evidente embora
também estivesse chorando. Notando a atenção da Dragonesa, ele deu de ombros.
_ Seu Dirceu cantou essa música inteira para mim
quando meu pai morreu – Maddock disse, sorrindo tristemente com os olhos úmidos
– Só achei que era a hora de devolver. Você... conhecia bem o Velho Dirceu...
Freya?
O sorriso dela ficou mais
evidente. Leviano, incômodo, grosseiro como fosse... Hermes Maddock sabia
respeitar um momento sério. Ela ergueu seu visor e retirou o capacete, soltando
os longos cabelos cacheados e ganhando um olhar admirado dele.
_ Você... pode me chamar de
Beatriz.