Wednesday, April 29, 2015

Capítulo 34

XXXIV – Távola Redonda


Apesar do estoque limitado de comida – levando em conta que Maddock vivia sozinho – eles conseguiram um café da manhã razoável, onde o anfitrião fazia questão de saber tudo o que se passara até então.
_ Afinal de contas, se eu vou ajudar vocês nessa roubada...
_ Espera um pouco, quem foi que pediu a sua ajuda? – Freya perguntou exasperada, e Maddock continuou como se ninguém o tivesse interrompido.
_ ... é melhor me contarem como foi que isso começou. Tão atrás de vocês? Quem? Como? Onde? Por que? E como é que eles se chamam...?
_ Mad, sem surtar – Zero retrucara com ar vazio ao ver a confusão de todos e o incômodo de Christabel e Freya – A gente te conta tudo, claro; a Tata também precisa saber como é que ela veio cair de pára-quedas nessa história toda. Mas vai precisar de muita coisa pra beber, que falar demais dá sede.
_ Tá me estranhando, jerico? – Maddock tornou a bater na testa de Zero – Vou chamar vocês pra falar sem trazer nada pra molhar a garganta? Vão se ajeitando ali na sala, eu preparei uma mesa pra nós, é só ir levando o grude.
_ ‘Grude’...? – Daniel e Melissa olharam de um para o outro, e Christabel suspirou, parecendo cansada. Não sabia se estava à altura de suportar tudo outra vez, numa versão ainda mais abusada do Zero original. Se até o que conhecia com freqüência tratava de conter o amigo...
Sua mão instintivamente procurou o punho da espada enquanto a Rainha se voltou, sentindo um olhar hostil sobre si. Os demais estavam levando travessas de comida e bebida para a sala e ela ficara sozinha com Sari, que olhava para ela em silêncio e com uma fisionomia carregada. Christabel não era tola, sabia do que se tratava. E não tinha nada a dizer.
Os olhos de Sari mantiveram-se sobre os de Christabel por mais um instante, um longo instante de silêncio, antes que a caçadora se pronunciasse.
_ Ele escolheu você. E, ao contrário do que imaginei, você o aceitou.
Novamente, não havia nada a dizer. Isso só dizia respeito a duas pessoas, e nenhuma delas era a caçadora. E Sari não parecia esperar resposta, tampouco.
_ Faça por merecer, Christabel. Ou nem todo o seu poder vai salvá-la de mim.
Era tudo o que havia a dizer, ao que parecia; a caçadora foi para a sala onde os demais estavam se reunindo, e não se deteve mesmo quando Zero veio à cozinha, olhando com alguma preocupação para a outra enquanto se afastava.
_ Christie, o que foi? A Sari tava meio estranha... Tá tudo bem?
Christabel sorriu para ele, de forma que era ao mesmo tempo misteriosa e alegre.
_ Nada importante ou inesperado. Vamos.
A assim chamada ‘mesa’ que Maddock dissera ter preparado era na verdade uma chapa metálica redonda de tamanho considerável, tomando boa parte do diâmetro da sala, e sua altura só fazia dela uma mesa adequada porque os assentos eram almofadas no chão. E parecia que Freya estivera reclamando quanto àquilo.
_ ... já comi em lugares piores, claro, mas eu pensei que ele tinha dito mesa!
_ E no entanto – comentou Laírton com alguma admiração – é sem dúvida muito espaçoso. O que dizem, Melissa e Daniel?
_ ... Olha, com sinceridade – Melissa olhou para Freya como quem pedia desculpas – eu até concordo com você que isso não é bem uma mesa, mas vai ser a primeira vez em dias que dá pra a gente comer sem se preocupar com ninguém nos perseguindo, nem qualquer surpresa indesejada. Talvez seja por isso, mas eu estou me sentindo muito à vontade... Dan?
_ Estava esperando que dissesse, Mel – Daniel acenou afirmativamente, com um sorriso leve – Sou um soldado de Melk; vivemos nossas vidas sempre em alerta, prontos pra interromper o que estivermos fazendo para lutar. Sua Alteza Christabel e Mestre Maddock, no entanto, garantem que não fomos seguidos até aqui, e... não sei, eu sinto o mesmo em meu coração. É uma sensação muito estranha, estar em segurança. Mas também muito agradável.
_ E, deve ter algum outro sentido nisso – Zero tomou seu lugar numa almofada, e não passou despercebido a ninguém que Christabel o seguira e sentou-se do lado dele.
_ O que quer dizer?
_ Bom, sabe, tem umas vezes em que o Mad gosta de...
_ Ah, vejo que já estão todos à minha espera.
Hermes Maddock se aproximava, vindo do andar de cima. Sua aparência, no entanto, fez com que quase todos eles franzissem o rosto, diante da estranheza. Havia um tapete de franjas acolchoadas preso sobre seus ombros como uma capa real, uma braçadeira metálica de suporte de encanamentos pintada de dourado sobre sua cabeça, como se fosse uma coroa, e uma espada de punho dourado e cravejado de jóias em sua cintura. Na verdade, como puderam ver pouco mais tarde, não passava de uma lâmina de hélice serrada que ganhara um punho cromado enfeitado com pequenas lâmpadas coloridas. O porte de Maddock e a leveza de seus movimentos enquanto se aproximava devagar, no entanto, tinha algo de realeza em si, e Christabel parecia visivelmente incomodada, mas Zero explicou em voz baixa:
_ Calma, Christie, que não é com você. Como eu ia dizer, o Mad às vezes encarna algum personagem histórico mais ou menos famoso, dependendo da ocasião. Pra ter colocado uma mesa redonda desse tamanho aqui embaixo e ter vindo com essa pose, eu acho que hoje é...
_ Rei Arthur – Freya murmurou, parecendo discretamente irritada – O maior rei de todos os tempos, segundo contam as lendas, e que deve voltar no momento de maior necessidade de seu povo... Como você se atreve...
_ Sem dúvida, dama cavaleiro – MadArthur confirmou, com um aceno sereno de sua cabeça em direção à Dragonesa – Num momento de grande necessidade me apresento, e fico grato em deparar com almas de tamanha grandeza reunidas uma vez mais ao redor da Távola Redonda. É uma grande honra conhecê-los.
Era curioso, sem dúvida, ver Maddock agindo tão perfeitamente a caráter de seu personagem, mas havia uma entre eles que não estava se divertindo ou se admirando em nada da figura escolhida pelo anfitrião. Freya, ao contrário, sentia que sua paciência não devia ser testada por mais tempo.
­_ ‘Távola Redonda’? Isso é um fecho metálico de alguma tubulação que você encontrou em seu ferro-velho! E como se atreve a usar esse nome...?
_ A Távola é o que seus olhos vêem, jovem dama – MadArthur respondeu com suavidade enquanto se sentava, depondo a espada sobre os joelhos – Um local de encontro de almas nobres em uma busca sagrada, quer haja grande esplendor e conforto ou acomodações humildes. Lamento que não esteja de seu agrado.
_ Não é... O problema não é esse! – Freya ruborizou por trás do visor que escondia seus olhos, respirou fundo e tentou ser razoável – Sem querer faltar ao respeito, mas...
_ Então não o faça, minha dama – MadArthur a interrompeu novamente, de forma ainda serena mas firme – Que essa discussão termine, gentis viajantes. Sirvam-se! Não há muito a oferecer, mas espero que esteja a seu contento. Comamos, bebamos, e falem-me a seu respeito enquanto o fazemos.
Mais de um rosto voltou-se para Zero, como que pedindo orientação, e ele sorriu.
_ Acho que posso começar falando então, Mad... digo, Sua Alteza. As nossas histórias acabam se misturando, mesmo... e acho que consigo ligar todas, aos poucos. No começo, éramos a Li e eu...
E Zero falou do período de treinamento de Melissa, uma jovem maga negra que ele com freqüência chamava de sua ‘irmãzinha’, disposta a aprender também sobre a tecnologia perdida do mundo e o que estava sendo reinventado pelas duas cidades, ao que Maddock sorriu calorosamente em cumprimento à moça.
_ Eu a felicito pela iniciativa. Ao que me consta, os envolvidos com tecnologia tendem a desprezar magia, e o inverso também é verdade. É corajosa por ousar ir contra tais convenções, e eu a honro por isso.
E ergueu o caneco do qual bebia, deixando Melissa corada e muito sem jeito.
_ F-foi só... curiosidade, eu sempre quis saber sobre o mundo antigo desde pequena. Mesmo tendo estudado magia, a curiosidade não passou. Não foi nada demais...
_ E ainda assim, é nos atos simples que reconhecemos as grandes pessoas – Maddock tornou a acenar sorrindo, e então voltou-se para Zero.
_ Isso também explica, decerto, o período em que fiquei sem visitas. Entendo. E o que os conduziu aos outros, meu irmão?
_ Se me permite – Sari ergueu a mão – eu gostaria de perguntar, se não for muito atrevimento, por que chama Zero de ‘irmão’? Ele é mesmo...?
_ Não, Sari, magina! – Zero pareceu escandalizado com a possibilidade – Eu nunca mais ia ter sossego, que é isso?
_ Uma pergunta justa, bela dama – MadArthur riu da reação do outro – e de forma alguma atrevida. Não, receio que devo desapontá-los; em termos de nascimento, somos apenas bons amigos. Mas Seu Dirceu sempre foi gentil comigo e cuidou de mim de forma paternal desde que meu pai verdadeiro morreu; desde então, chamo de irmão a este tolo mancebo. Um tanto reservado demais, infelizmente, mas há defeitos mais sérios na personalidade de muitos.
_ ‘Reservado’...? – Daniel olhou sem poder acreditar para Maddock, para Zero e de volta para o anfitrião, e Laírton sorriu.
_ Pessoas diferentes têm visões diferentes do mundo, caro Daniel. Por favor, prossiga Zero. De certa forma, o que vai contar é novidade para a maioria de nós até certo ponto.
_ Tá. Então, Mad, continuando...
Ele falou da escavação onde ele e Melissa tinham descoberto a jóia Dragão de Fogo de tamanho considerável que seriviria para o Amplificador que Christabel ordenara que construíssem, e de sua viagem para lá.
_ Christie tava lutando com um monstro nervoso quando a gente chegou lá – o semblante de Zero escureceu um pouco – Ele disse que se chamava... como é que era mesmo? Dentadura, um negócio assim...
_ Ahl-Tur, Mestre dos Arcanos – Christabel corrigiu ao lado de Zero com ar vazio – Ao menos enquanto conta a história, você podia ser mais objetivo.
_ Receio que a objetividade esteja além das capacidades de meu irmão, Majestade – MadArthur sorriu para Christabel – Podem me esclarecer, então, que tipo de ser era o mencionado Largura? O que é um Arcano, exatamente?
Apesar do ar aborrecido de Freya e Christabel e do sorriso discreto de Laírton, que esperara por algo assim da parte do anfitrião, foi Sari quem respondeu:
_ Em aparência, eles são como humanos altos e com chifres curtos na cabeça, com asas de morcego semelhantes a capas na extensão de seus braços, e dotados de muito poder em magia. Seus corpos físicos e espíritos não estão exatamente unidos; enquanto os confrontei, eu tive essa certeza. Mesmo que seus corpos sejam totalmente destruídos, os espíritos ainda podem ser capazes de recriá-los em circunstâncias normais. São adversários terríveis.
_ ... Eles não são muito fáceis de derrubar não, Mad – Zero confirmou com um aceno de cabeça, parecendo sério e erguendo a pistola de quatro tiros – Na primeira vez que topei com o fulano, eu descarreguei essa criança aqui no bicho e ele continuou de pé e falando besteira. Foi embora, mas nem parecia que eu tinha atingido algum ponto vital do miserável.
_ Interessante – mesmo Maddock parecia sério por um momento, mas sem qualquer outro comentário pediu que a história continuasse, e Zero falou do dia seguinte, quando encontrara o velho desconhecido que lhe dera os visores e que parecia saber tanto sobre máquinas, descrevendo o funcionamento da Unicórnio apenas ao olhar para ela, e Melissa tambem comentou:
_ O Zero ficou muito impressionado com ele, sim, embora no dia eu tenha achado que era só um mendigo viajante meio mal-educado...
_ O que, novamente, vem provar de que as aparências podem enganar – Maddock concluiu imperturbável, aparentemente alheio ao olhar que Christabel deu a ele e a Zero – E depois?
_ Foi quando rolou um torneio que o pessoal da Fortaleza de Melk faz a cada seis meses, parece, pra escolher líderes e soldados pra dar uma força nas lutas. Foi quando conhecemos o Daniel aqui, que aproveitou pra dar uma cantada na Li.
_ O quê? – Daniel engasgou com o café que estava tomando, ficando tremendamente corado enquanto Melissa, ao seu lado, jogava um bolo em Zero – N-não, eu... digo, eu só quis... Se não fosse o...
_ Está tudo bem, cavaleiro – Maddock sorriu abertamente, acenando na direção de Daniel – Não é algo novo, que bravos cavaleiros dediquem seus atos de bravura a belas donzelas. E você é um cavaleiro, e Melissa é uma bela donzela. Muito apropriado.
Apropriado ou não, o assunto deixou Daniel e Melissa mais corados ainda, e a maga negra jogou o pedaço seguinte em Maddock, fazendo Zero gargalhar.
_ Parece que a Li já se acostumou com você, Mad!
_ Sem dúvida – MadArthur limpou o rosto com a mesma elegância de rei que demonstrara a manhã inteira, mas seu riso estava além do personagem a julgar pela situação – Nada inesperado, felizmente. E, antes de declararmos ‘guerra de comida’, quer por favor continuar o relato, Zero?
_ É, então... Eu achei que ia ser divertido participar da coisa toda também, dediquei a participação à Christie aqui e...
Zero encolheu-se, parecendo lutar para conter um gemido, enquanto Christabel parecia indiferente  mas na verdade dera-lhe um beliscão. Com lágrimas nos olhos pela dor reprimida, Zero prosseguiu:
_ ... e... então... eu participei de algumas rodadas do torneio, até que a Sari aqui me venceu numa das finais. Você me conhece, Mad; podia até ter vencido ela se fosse um torneio de tiro, mas com espadas eu sou só mais ou menos. E a Sari é ótima.
Christabel pareceu imperturbável a esse comentário, a não ser pela força com a qual mordeu a fatia de bolo que apanhara na mesa. E Sari tomou conta do relato então.
_ A fortaleza tornou a ser atacada naquela noite, e fui gravemente ferida... e salva pelo esforço de Zero, Melissa e Daniel, logo depois que Christabel tornou a derrotar o Arcano. Eu... Acho que devo dizer... estou sob a maldição de uma criatura sugadora de energia, um tipo de vampiro... e eles puderam me ajudar cedendo de espontânea vontade a energia das próprias vidas para repor aquela que eu tinha então perdido...
Sari falava de cabeça baixa, quase parecendo desculpar-se por sua condição incomum, e Christabel estranhamente parecia ainda mais aborrecida, pois estava lembrando-se daquele dia e da atitude de Zero. A longo prazo, ela sabia, era por aquela e outras atitudes semelhantes que viera a gostar dele, mas nem isso fazia com que a lembrança dele amparando a outra fosse mais simples de aceitar. À sua frente, Freya parecia olhar para Sari com interesse e alguma preocupação, mas Maddock tinha uma expressão diferente, parecida antes com piedade do que curiosidade.
_ Entendo que tenha reservas em mencioná-lo, bela dama, e agradeço pela confiança implícita em nós ao nos contar. Creio que já deve tê-lo percebido, seus companheiros viverão para corresponder a tal confiança. E a partir deste dia, pode me contar entre eles.
Sari ergueu os olhos, e sorriu para Maddock. Podia ser ainda mais insano do que o próprio Zero, mas também tinha o desprendimento dele. Não a julgava pelo que se tornara, e ela era muito grata por isso.
_ No dia seguinte, Christabel ativou o Amplificador, e um tipo de barreira de magia cobriu toda a fortaleza. E foi o que faltava para que um grupo de assassinos enviados pelo conselho de Melk tentasse eliminar a Rainha, que não podia usar sua magia por ter uma tiara de arcânio com jóias Dragão de Fogo incrustadas nela...
_ A coisa tava servindo como barreira, Mad – Zero retomou a narrativa – Encurralaram a Christie e a gente forçou a saída de lá, e eu sugeri que a gente viesse até a Sucata pra ver se meu pai não tinha como tirar aquele troço; cê sabe, ainda não inventaram um negócio que o Velho Dirceu não possa...
Mas então, Zero lembrou-se, isso não era mais verdade. O Velho Dirceu fora capaz de manter sua reputação até o fim, mas agora...
_ E nós paramos em Garland, onde o Zero ia mandar uma carta pro Seu Dirceu explicando a situação – Melissa lembrou, retomando a narrativa – Fomos pra ajudar ele, o Daniel e eu, e depois de lutar com um grupo de assassinos de Melk... tivemos que enfrentar aquele monstro...!
_ ‘Monstro’...? – Maddock perguntou com gentileza, mostrando que não compreendera. E foi Laírton quem explicou:
_ Um espantalho, animado por um Espectro, um espírito sombrio dotado de grande poder das trevas. Aquele em particular tinha o poder de reerguer os mortos e controlar animais. Quando mesmo os animais mortos foram reerguidos, achei que deveria me intrometer na luta, e foi oportuno que eu pudesse derrotar a criatura.
_ O Laírton tá sendo muito modesto, Mad; sem ele, acho que eu, Daniel e a Mel tínhamos virado zumbis, igualzinho os bichos que aquele espantalho metido a besta tava manipulando – Zero cortou novamente – Contamos a história toda até ali pra ele, e desde então, o Irmão aqui tem ajudado a gente ao longo do caminho.
_ De forma bem simples, dentro de minhas capacidades apenas, Mestre Maddock.
_ Zero tem razão, Laírton – Daniel sorriu para o Religioso – Está sendo muito modesto. Foi de grande ajuda para nós quando tivemos que lutar contra a criatura Sáurio no caminho até a Cidade Sucata.
_ É, e ia ter sido ainda pior pra mim depois que a gente chegou na Sucata sem as orações do Laírton pra ajudar a me curar – Zero acenou, erguendo um caneco na direção do amigo – Tinha uma matilha de Ferais caindo em cima do grupo, e até o pessoal da Sucata chegar pra dar uma força, eles tinham conseguido me tirar uns pedaços, Mad. Foi graças ao Laírton aqui que eu tava pronto pra ajudar meu pai quando ele tentou tirar a tiara da Christie.
_ Mas eu deveria ter auxiliado vocês também nisso, amigo Zero – Laírton respondeu, de cabeça baixa – Você, Melissa, seu pai e a Rainha talvez tivessem tido sucesso inicialmente se eu tivesse...
_ O quê, adivinhado o que ia acontecer? – Zero deu de ombros, enquanto MadArthur olhava de um para outro, visivelmente confuso – Nah, você pode até trabalhar pra Deus, Laírton, mas não é Ele. Não dá pra estar em todos os lugares, nem fazer tudo o que quiser. Você não tinha como saber que a tiara da Christie tava bem protegida demais pra ser arrancada como meu pai pensou em fazer no começo, e nem que ia doer tanto nela. E, apesar do poder dela ter sido contido, Mad, ela ainda conseguia extravasar um pouco em situações de tensão ou muita dor, e aquela foi uma delas.
“Meu pai tentou remover a tiara arrancando dela as jóias Dragão de Fogo, sem imaginar que elas e o metal tinham se ligado à Christie como se fossem ímãs. Dá pra imaginar, então, o quanto não deve ter doído quando ele tentou usar chaves de fenda pra tirar as coisas de lá. Depois de um tempo, ele percebeu que aquilo não ia funcionar e teve a idéia de usar maquinário da Cidade Avançada pra sobrecarregar as jóias, mesmo que fosse por pouco tempo, pra impedir elas de grudarem na Christie”.
_ Sim, é algo que Seu Dirceu teria feito – MadArthur sorriu, pensativo – Se bem que me parece, a princípio, improvável que os cientistas da Avançada concordassem em ajudá-lo.
_ Ah, você conhece meu pai: sempre teve jeito pra convencer qualquer um de qualquer coisa – Zero deu de ombros – O Dr. João Matogrosso, um velho amigo dele de quando minha mãe tava viva, deu assessoria pra ele no novo plano. Claro, tivemos que subir até a Avançada com a Christie, porque não ia ter como levar as máquinas pra Sucata.
_ Infelizmente, a dor de Christabel e seu poder, que até então tinham sido difíceis de detectar aos que a perseguiam, acabaram por atrair atenção indevida – Sari comentou sombriamente – Eu pude pressentir a aproximação de todo o tipo de criatura desta região, e algumas de mais além, e o propósito deles parecia óbvio.
_ Sari me falou a respeito, Mad, e bolamos um plano. Foi onde o bicho pegou mesmo.
E Zero contou ao amigo sobre a louca escapada pelo vale, e de terem atraído a atenção das feras e seres míticos que perseguiam Christabel enquanto a própria Rainha permanecia na Cidade Avançada, escondida pelas orações de Laírton e novamente se submetendo aos cuidados do Velho Dirceu, desta vez mais bem sucedido.
_ Acho que posso falar por todo mundo aqui – mostrou os amigos com o caneco erguido – quando digo que espero nunca mais ter que lutar tanto de uma vez só na minha vida. A gente bateu de frente com tudo o que você possa imaginar, Mad, e até algumas coisas que você não tem como imaginar. O plano da Sari funcionou direitinho, os bichos vinham pra cima dela, com o manto da Christie e o Escudo da Li fazendo parecer que ela era Christabel enquanto a verdadeira ficava embaixo da proteção do Laírton. Os doidos da Sucata resolveram sair pra ajudar a gente, apesar de eu ter falado pra aquela mula do Éderson que era assunto nosso...
_ É o que verdadeiros amigos fazem, meu irmão – MadArthur replicou, servindo-se de um gole generoso de seu caneco – Acredito que você não tenha visto qualquer dos seus possíveis desafetos indo em seu auxílio, ou estou enganado?
_ Nah, aí também é querer demais, né Mad?
_ Eles também ficaram em risco, passada a surpresa das criaturas – Sari lembrou – E Zero resolveu que devíamos nos afastar tanto quanto pudéssemos, comprando mais tempo para Seu Dirceu e Christabel. Ele voltou a motocicleta para longe e fugimos com mais velocidade do que eu achava possível...
_ Heh... Minha Unicórnio – Zero sorriu com carinho, erguendo o caneco em saudação à sua moto destruída – Mesmo manobrando, consegui ficar mais rápido do que todos os outros e até achei que dava pra escapar, uma hora. Se a gente tivesse conseguido chegar nas Minas Antigas...! Faltou muito pouco, Mad.
_ Mas fomos interceptados por Sáurio, que cortou nossa fuga – Sari remexeu no que estava bebendo – E não tivemos como continuar fugindo quando os Nove Arcanos chegaram, liderados por Ahl-Tur.
_ Nove deles? – mesmo Christabel voltou-se para Zero e Sari, admirada. Pudera sentir a presença de outros que deveriam ter acompanhado o Mestre dos Arcanos quando fora ao socorro de Zero e Sari, mas não havia como imaginar quantos deles houvera. E Zero acenou que sim.
_ Deviam estar preparados pra te enfrentar, Christie, com ou sem tiara. Meu pai tinha se preparado pra eles, também – puxou uma das balas revestidas com jóias Dragão de Fogo e a exibiu – Munição especial. Ele tava apostando que isso podia até com os Arcanos e, só pra variar, acertou na mosca.
_ ... Mas não foi com isso que os derrotou – Christabel olhou para Zero inquisitivamente, e Sari respondeu:
_ Eu não entendi quando Zero os viu chegando e disse que precisávamos alcançar sua moto caída; não teríamos como fugir deles. E ele a explodiu com tiros depois de abater dois Arcanos com essas balas especiais; os estilhaços da explosão abateram outros quatro e também fizeram o deserto desabar.
_ Não conseguimos alcançar a entrada das Minas Antigas, mas já tínhamos chegado sobre um dos túneis delas – Zero bebeu – Eu não tava esperando que o chão fosse ceder com a gente em cima, sério mesmo. Achei que ia ficar por conta da Sari, não tava pondo muita fé de que eu ia... bom, vocês sabem.
E deu de ombros. Não era preciso explicar tanto.
_ Ao invés, o mundo embaixo de nós despencou e aí sim eu falei ‘Danou. Pelo menos levei esses lazarentos junto’. E não vi mais nada.
_ Apesar do desabamento, eu podia perceber claramente os Arcanos sobreviventes – Sari murmurou, a voz baixa e preocupada relembrando o momento – Também podia sentir a força da vida de Zero diminuindo, e sabia que tinha que me apressar. Fui capaz de pegar um dos sobreviventes de surpresa, mas fui forçada a confrontar os outros dois e, confesso, estava começando a temer não conseguir alcançar Zero a tempo. Foi então que Christabel apareceu, acompanhada pelos Sete Dragões.
_ É onde você entra nessa história, eu presumo, Lady Tata? – Mad voltou-se para Freya com o mesmo ar solene, embora o uso continuado do apelido não tenha passado despercebido.
_ Eu já disse a você...!
_ Ô Mad! – Zero entrou na discussão e quase convencia com seu ar vazio e aborrecido – Se quer ouvir a história direito, vê se pára de provocar a Tata, só um pouquinho? Vai demorar pra caramba desse jeito! Então, de quem é a vez?
_ Acho que posso prosseguir, Zero – Laírton continuou, sorrindo – Ahl-Tur levou sua companheira e desapareceu, e pudemos levar Zero para ser tratado propriamente na Cidade Sucata, mas apenas depois de tê-lo recuperado da inconsciência.
_ ... O mérito foi de Christabel, até onde entendo – Freya comentou, olhando para a Rainha sentada ao lado de Zero – Irmão Laírton e Sari o estavam curando, mas ele não reagia. Não entendo bem como foi, mas parece... que ele esteve à beira da morte.
Christabel olhou ao redor, surpresa, e corou e baixou os olhos quando deparou com o sorriso carinhoso de Zero ao seu lado. Sari desviou o rosto e Melissa, aparentemente alheia ao que estava acontecendo, prosseguiu:
_ Eu fiquei muito assustada quando o Laírton falou dos ossos quebrados do Zero, e que mesmo depois de curar ele ainda podia ter que ficar imóvel por alguns dias. Mas o Seu Dirceu falou que tinha outro jeito, e levou todo mundo pra dentro de casa. Depois é que eu fui entender porque.
_ Meus exoesqueletos – Maddock murmurou, e Zero retomou a narrativa.
_ A idéia do meu pai, acho, era despachar a gente pelo Velocípede e depois liberar a Tata com uma história qualquer; cê sabe, a gente não deixa ninguém saber dos trilhos.
“Provavelmente ele ia convencer os vigias da noite a jurarem que tinham visto nossa turma sair da Sucata de madrugada; a gente faz isso o tempo todo, ninguém ia estranhar. Só que o tal do Caradura pelo jeito não ficou machucado com a explosão da Unicórnio; ele atacou enquanto o Velho Dirceu tava preparando os tubos de propelente pra a gente chegar aqui. Eu ainda quis atirar; tinha munição na Marcadora. Mesmo com os braços fracos, eu tenho certeza que ia conseguir atirar nele, Mad. Mas... daí, eu vi meu pai, ele... ia quebrar a válvula, ia jogar a gente direto nos túneis e não ia subir, não ia vir junto, e eu... a única coisa que eu podia fazer era atirar, mas...”
Christabel pôs a mão gentilmente sobre os lábios de Zero, fazendo-o silenciar. Maddock sem dúvida era capaz de deduzir o restante sozinho. Daniel abraçou Melissa, que estava chorando baixinho, e todos estavam olhando para Zero, subitamente sentindo a garganta presa e sem conseguir continuar. E então, ouviram a voz de Maddock cantando baixo e com voz clara:

Uma canção pra lembrar

Uma canção pra esquecer.

Você nunca vai saber o quanto eu tentei

Te deixar orgulhoso e honrar o seu nome,

Mas você nunca me disse adeus.


Eles se voltaram. Maddock estava de cabeça baixa, mãos unidas sobre os joelhos e cantando de olhos fechados. Zero olhou para ele como se reconhecesse a canção, e seus olhos ficaram marejados enquanto ele também cantou, embora com a voz rouca:

Agora que você se foi, lançando sombras do passado,
Você e todas as lembranças vão restar.

Maddock ergueu os olhos e sorriu carinhosamente para o amigo, acenando que sim com a cabeça e concluindo:

Não chore, ou sofra por mim.
Estarei esperando por você.
Não chore.
Anjos nunca desaparecem.
Vou tomar conta de você.
Te vejo depois.*

Mais de um dos companheiros também ficou comovido ao ver Zero chorando, a cabeça no ombro de Christabel, que afagava seus cabelos. Freya, no entanto, voltou-se para Maddock, e seu sorriso era evidente embora também estivesse chorando. Notando a atenção da Dragonesa, ele deu de ombros.
_ Seu Dirceu cantou essa música inteira para mim quando meu pai morreu – Maddock disse, sorrindo tristemente com os olhos úmidos – Só achei que era a hora de devolver. Você... conhecia bem o Velho Dirceu... Freya?
O sorriso dela ficou mais evidente. Leviano, incômodo, grosseiro como fosse... Hermes Maddock sabia respeitar um momento sério. Ela ergueu seu visor e retirou o capacete, soltando os longos cabelos cacheados e ganhando um olhar admirado dele.
_ Você... pode me chamar de Beatriz.

 *(Don’t You Cry – Kamelot)

Capítulo 35

XXXV – Tempo Passado em Boa Companhia


Os seis dias seguintes foram repletos daquilo que Christabel mais temera e desejara durante boa parte de sua vida.
Seu coração tinha encontrado a paz. Era uma coisa estranha de se pensar, ela admitia: a Rainha de Melk, temida até pelas criaturas de Além da Fronteira, encontrara paz num cemitério de máquinas do mundo antigo. Era a primeira vez em toda a sua vida que não era movida por urgência, não sentia a necessidade de se proteger das pessoas à sua volta... e por estranho que lhe parecesse, também era muito agradável.
Estava sentada sobre a asa de um dos inúmeros aviões do cemitério, sentindo o sol em seu rosto e o vento que agitava seus cabelos. Seus sentidos continuavam alertas como sempre tinham estado, mas agora sua percepção aguda servia para observar os amigos em atividades que, em seu lar, ela teria considerado tolices.
Irmão Laírton, por exemplo. Terminado o período da manhã em que comiam, e no qual o Religioso e Maddock pareciam dedicar-se exclusivamente a acabar com o estoque de vinho caseiro do anfitrião (de sabor doce, e efeito duvidoso), ele se afastava e ficava sozinho por pouco menos de uma hora, orando e parecendo comungar com a natureza à sua volta.
Christabel voltou seus olhos para dentro do pátio do cemitério. Lá estava o Religioso, o cajado posto sobre suas pernas cruzadas enquanto ele conversava animadamente com os pequenos pássaros que se aproximavam e pousavam nele, e também abelhas e borboletas. Como ela, Laírton escolhera uma das sucatas do pátio e estava sentado sobre a cabine do avião, parecendo quase relaxado demais. Ninguém acreditaria que era um fugitivo apenas olhando para ele...
“... ou para mim.”
Também Zero parecia estar de volta a si mesmo. O tratamento de Laírton se estendera por mais tempo do que o previsto, e o mecânico era inquieto demais para ficar parado e deixar seus ossos e organismo descansarem como seria adequado, mas ao menos os tais exoesqueletos de Maddock faziam bem sua parte. Já no segundo dia desde sua chegada ali, Zero e o amigo foram para um cômodo à parte nos fundos da casa, onde Maddock dissera ter uma surpresa.
_ Lembra daquilo que eu tinha te falado, sobre arrumar umas rodas pra mim? – Maddock dissera, fazendo suspense antes de abrir a porta corrediça – Pois é! Deu um bocado de trabalho, conseguir um que desse pro que eu queria, mas a espera valeu a pena.
_ O quê? – Zero pareceu incrédulo – Não vai me dizer que você encontrou...
_ Tá bom, não digo – e Maddock abriu a porta – Veja você mesmo, e babe por essa gracinha!
Christabel, até então se mantendo próxima o bastante apenas para ouvir a conversa, resolvera expor-se um pouco para descobrir de que espécie de ‘gracinha’ o anfitrião estava falando. E o que viu foi apenas mais um veículo, em muito parecido com vários dos carros da Cidade Sucata. Um carro de passeio em outros tempos, de porte grande... e por que Zero parecia tão encantado?
_ Mad... Cara, não acredito que tô vendo isso! E-ele anda mesmo?
_ Nãão – Maddock retrucou com sarcasmo – Mas serve uma caipirinha de primeira! Qualé, Zero, vou te jogar lá embaixo! Isso é pergunta que se faça?
_ Tá, tudo bem, desculpa. É só que... até lá na Sucata, é muito difícil ver um Palão desses.
_ Nah, besta, isso aqui não é ‘um’ Palão; esse aqui é ‘O’ Palão! – Maddock exibiu o carro com orgulho – Vai dizer que não reparou em nada demais?
Com o mesmo olhar admirado do qual Christabel não gostara, Zero começou a andar ao redor do Pala e murmurou:
_ Não sei... Faz muito tempo que eu não vejo um desses, posso tá falando besteira... mas esse aqui parece meio grande demais, mesmo pra um Palão.
_ Bom... Muito bom! – Maddock riu – Não chamei de ‘O’ Palão à toa, Zero; eu coloquei mais um metro e meio de lataria nele, pra deixar essa gracinha mais útil. Sabe como é, carregar algumas das peças dos aviões de um lado pra outro é trabalho pesado, ainda mais quando se mora sozinho.
_ Foi mal por não ter mais aparecido, Mad...
_ Ei, você e o velho tavam mantendo o nosso acordo, deixando o Cemitério escondido – deu de ombros – Esse tipo de coisa era de se esperar. E depois, fiquei com o carro só pra mim!! Não foi nada mal.
_ Cara egoísta – Zero riu – Mas, e aí, quando é que damos uma volta? Eu queria dar uma olhada no avião...
_ Depois, mano – Maddock falou, mais sério – Não foi só pra exibir o Palão que eu te trouxe aqui. Pode ser que a gente precise dar uma garibada no menino em breve, especialmente com toda a companhia que você trouxe. Num Pala normal, alguém ia ficar de fora; num Palão mexido, acho que até dava pra colocar todo mundo dentro, mesmo apertado...
_ É, mas n’O Palão, com esse tanto de lataria que você pôs – Zero sorriu mais abertamente, esfregando as mãos – só o que nós precisamos é de alguns bancos, um bocado de esforço...
_ ... e muita categoria – Maddock estendeu a mão direita para que Zero batesse – Vai ser como nos velhos tempos, né não irmãozinho?
_ Como nos velhos tempos, mano velho! E aí, começamos quando?
_ Assim que o Irmão garantir que essa tua ossada dá conta do recado.
_ Vai se danar, Mad, eu não vou cair aos pedaços por suar um pouquinho, não! É preciso muito mais que um pouco de trabalho pesado pra acabar com o velho Zero!
_ É assim que eu gosto de ver – Mad sorriu – Anda, vamos ver o que o Laírton diz.
De forma discreta e um tanto tímida, Christabel assistira Zero e Maddock trabalhando nos dias seguintes ao longo da semana, por vezes assistidos por Melissa, curiosa por aprender mais. Laírton, que tinha curiosidade na tecnologia antiga, também estivera lá para certificar-se de que Zero não se esforçaria mais do que o sensato. E Christabel por vezes se distraíra olhando para Zero trabalhando, o suor saudável de seu esforço escorrendo enquanto ela percebia a saúde de seu corpo e espírito retornando gradualmente ao fazer a restauração e reforma do veículo de Maddock.
Uma pessoa estranha seu anfitrião, ela pensou, mas indubitavelmente atencioso. E parecia estar se interessando por Beatriz, a Dragonesa Freya, que depois de ceder o suficiente para revelar o verdadeiro nome tornara a assumir uma atitude de desagrado para com o outro. Contudo, Christabel percebia claramente que aquela era uma história que ela já vira acontecer antes, e bem podia antecipar um palpite sobre como terminaria. E sentiu o rosto aquecer-se um pouco e voltou sua atenção para fora do pátio do cemitério e para o horizonte poeirento enquanto se recordava.
 Conforme o prometido, depois de ter ouvido a respeito da viagem deles e ainda em sua encarnação de Rei Arthur, Maddock mostrara aos visitantes o seu tão falado Cemitério de Aviões com riqueza de detalhes, como um guia turístico faria numa cidade histórica. Melissa fez inúmeras perguntas, maravilhada com tamanha mostra de tecnologia antiga em seu estado bruto, não manipulado pelos especialistas em restauração. Freya também parecera impressionada, o que despertou a curiosidade de Laírton.
_ Mas, certamente, você já viu algo semelhante ou até superior a isso em seu próprio lar, cara Freya?
_ Superior? – indagou Maddock como se tivesse sido ofendido – Acho improvável, Irmão Religioso.
_ Por favor, não me compreenda mal, Meu Senhor – Laírton pedira fazendo reverência, e Christabel e Sari admiraram-se da seriedade que o Religioso estava dando à sua interpretação – Apenas quis dizer que os recursos tecnológicos da Cidade Avançada decerto já reviveram alguns exemplares destas aeronaves, ou devem estar à beira de fazê-lo.
Novamente, tanto Christabel quanto Sari puderam ler na expressão e nos modos da Dragonesa que aquilo não era necessariamente verdade; antes que Freya pudesse dizer qualquer coisa, no entanto, MadArthur rira com altivez e pouco caso.
_ Não estão nem perto, Irmão Laírton. Quando muito, montaram um carro com asas e acreditaram que velocidade a mais o faria voar. Ah, por favor...
Freya, que desde a demonstração de respeito de Maddock a Seu Dirceu estivera sem sua máscara, olhou para as costas do anfitrião com desagrado e protestou:
_ Se acha tão esperto! Você não sabe nada da Cidade Avançada.
_ E vocês, minha dama, não sabem coisa alguma sobre aeronaves – retorquira Maddock, parecendo finalmente perturbado apesar de manter a postura de realeza. E Christabel ouviu Zero cochichar:
_ Danou. Mexa com o Mad, mas não fale mal do conhecimento dele, ou a coisa fica feia.
_ E por que não interfere? São seus amigos.
_ Por isso mesmo, Christie – Zero murmurara, sorrindo ao olhar para Freya e Maddock, e o silêncio dela bastou. Não entendera a postura dele. Piscando discretamente, ele perguntou:
_ Não parece briga de marido e mulher?
Christabel baixara os olhos, sentindo-se encabulada sem saber porquê e tornando a ouvir com atenção o que Maddock e Freya estavam dizendo.
_ É verdade, admito: nós tivemos alguns acidentes durante experiências. Nada de mais! A história diz que isso era muito comum antigamente!
_ Sim, claro; quando o mundo não tinha a menor noção do que era uma aeronave. Ter todos os dados históricos, ter inúmeras plantas para pesquisar e não atinar com o motivo dos fracassos, entretanto, apenas evidencia quão ignorantes são os seus ditos estudiosos!
_ Ignorantes! Está querendo dizer que sabe algo que todo corpo docente da Cidade Avançada desconhece, ‘Rei Arthur’?
_ Talvez eu esteja, minha dama – ele deteve-se, olhando imperiosamente para ela – E é algo que você poderia aprender também, caso tivesse olhos para enxergar!
_ Enxergar? Do quê está falando?
_ Olhe à sua volta – MadArthur exibiu o cenário ao redor deles com um aceno amplo de mão – Se acredita tanto no seu precioso ‘ensinamento dos cientistas’, diga o que consegue ver aqui que nenhuma das imitações de aeronave produzidas na Avançada jamais teve!
Freya de fato olhara ao redor. Por um momento longo, deu uma volta e olhou para cada peça de tecnologia antiga que sua visão pôde encontrar. E ao encarar Maddock, dissera com desdém:
_ Ferrugem, poeira e teias de aranha. Esqueci alguma coisa?
Maddock obviamente tinha a resposta na ponta da língua, e talvez fosse algo à altura do desdém de Freya, porque Zero finalmente interveio.
_ Opa, parou, olha o nível! Bom lembrar, Milorde, que um rei tem que manter a postura! Deixa essa passar, vai.
MadArthur continuou olhando feio para Freya por um longo momento, antes de dar-lhe as costas e murmurar:
_ Não fosse eu um rei...! Ah, bem. Ao menos agora, sei que espécie de treinamento dão às jovens na Cidade Avançada; não é de se admirar que não saiam do chão.
_ Se tem alguma coisa a dizer...! – Freya começou, e Zero interrompeu a ela:
_ Nah, já deu, Tata. Vai por mim, o cara sabe do que tá falando. Ninguém entende melhor de coisas que voam na terra e no ar do que o Mad.
_ E baseado em quê você diz isso?
_ Bom – ele olhou ao redor e deu de ombros – Quebrados ou não, ele ainda tem muito mais aviões à volta dele do que os gênios da Avançada, isso cê tem que admitir.
Não havia argumento possível àquilo, e talvez Freya também soubesse, pois não dissera mais coisa alguma então. Christabel observara que Maddock não era do tipo que ficava aborrecido por tempo demais, mesmo tendo sido atacado em sua veia sensível, mas Freya mantivera sua reserva por cerca de dois dias, tempo no qual a Rainha notara com algum divertimento que a Dragonesa discretamente se dedicara a observar com atenção os restos dos aviões. E até onde ela pudera notar, Freya não descobrira qual era o grande segredo que Maddock fazia parecer tão óbvio.
_ Uma moeda pelos seus pensamentos, Christie.
Ela sorriu, quase sem voltar a cabeça. Também a aproximação dele ela notara, embora não tivesse qualquer pressa em dar evidência. Era estranho, não ter que ficar em guarda o tempo todo. Maravilhosamente estranho.
_ Parece estar bem melhor, Zero.
_ Ah, você notou? – ele estendeu os braços, agora livres dos exoesqueletos de Maddock – Laírton disse que meus membros já tão prontos pra outra, e é só questão de tempo até o resto também ficar bom. Melhor que seja logo; nunca se sabe quando outro deserto vai cair na minha cabeça.
_ Não devia brincar com isso.
Ela estava muito séria agora, o rosto totalmente voltado para ele. E Zero deu de ombros, quase se desculpando.
_ É só um fato, Christie, uma coisa da qual não tem como fugir. A Terra já veio atrás de mim antes, e não conseguiu me pegar. Claro que ela vai tentar de novo.
_ E você pretende dar outra chance a ela.
_ Sei que você entende isso – ele também parecia sério agora – Não escolhemos o que somos. Apenas somos.
Ela aconchegou-se a ele, e Zero a abraçou. Claro que ela entendia; por um motivo semelhante, passara metade da vida cercada por gente que a queria morta. Mas não precisava gostar disso, e preferiu mudar de assunto.
_ Os outros, como estão? Não tenho visto Melissa e Daniel ultimamente.
Zero sorriu novamente. Típico de Christabel, mas ele também não estava muito ansioso por continuar a discussão, e respondeu casualmente:
_ Ah, ela e o Mad ficaram de arrumar a arma do Daniel, e agora ele tá aproveitando pra treinar com ela. Com tanta confusão, também, o volume de magia da Li aumentou, ou é o que ela diz. Explica isso pra mim?
_ Com a experiência que ganhou, pode lançar mais magias no mesmo dia antes de cansar-se – ela olhou para ele como se aquilo devesse ser óbvio – Talvez até tenha aprendido a derivar novos feitiços, mais complexos, daqueles que conhecia.
_ Ah, não me olha desse jeito – ele deu de ombros – Meu negócio é restauração de artefatos, não entendo nada de magia!
_ Basicamente, é como exercitar-se. Depois de um certo esforço, você ultrapassa o limite que tinha e pode esforçar-se mais. Então, ela e Daniel têm treinado juntos?
_ É, mas não é só isso; acho que a Li tá tentando fazer o Daniel gostar de tecnologia antiga, também. Ao menos, tem levado ele pra quase toda a parte quando vai ver os aviões do Mad. Heh... Acho que o velho Maddock tá curtindo pra caramba tanta atenção, isso aqui deve ter ficado muito quieto por todo esse tempo que nem eu nem meu pai viemos.
_ Por que tanto segredo? – ela olhou novamente no rosto dele – Seu pai e você, com os trilhos subterrâneos... Maddock disse que vocês não queriam.
_ Era mais ou menos isso mesmo. O pai do Mad, Capitão Maddock, era um tremendo amigo do meu pai, e tido como doido na Cidade Avançada quando chegou dizendo que reinventar as máquinas que voavam era brincadeira de criança, se soubessem onde procurar. Ele atiçou muita gente a querer voar, isso é verdade, mas também foi expulso de lá por ter causado tanta confusão.
Ela pareceu em dúvida, e Zero explicou:
_ Nunca iam pôr um sujeito de fora na liderança dos projetos, não importando o quanto ele dissesse que sabia. No fim, meu pai convenceu ele de que era melhor levar as pesquisas por conta própria; dava pra ter resultados mais rápidos do que tendo que respeitar os orçamentos, a burocracia e toda a frescurada dos crânios da Avançada, e bastava o Capitão chegar com um aviãozinho funcional que fosse, todo mundo ia dar atenção a ele.
_ Mas ele morreu antes de conseguir.
_ É – Zero pareceu triste – Meu pai tava junto, ele, minha mãe e uns poucos amigos. Meu pai e o Capitão tavam na aeronave experimental quando ela caiu. Não tinha mais o que fazer pelo Capitão, e a perna do meu pai nunca mais voltou ao que era; por isso ele usava aquela bengala. Eu era muito novinho, não lembro de muita coisa, só do meu ‘mano véio’ Maddock chorando um bocado de noite, com minha mãe e meu pai tentando segurar a barra. Mad é quatro anos mais velho que eu, e decidiu sozinho que não ia voltar pra a Sucata com a gente, não. Queria terminar o tal avião que o pai dele tinha tentado fazer.
“Minha mãe não gostou muito a princípio, mas os colegas da época vieram morar com o Mad por um tempo, pra não deixar o menino sozinho, e ele decidiu que não queria que ninguém da Avançada soubesse do que andavam fazendo no Cemitério até conseguirem terminar o avião do pai dele.”
_ E até hoje...
_ Os colegas da equipe não ficaram por muito tempo – Zero deu de ombros, parecendo triste – Acho que o sonho deles morreu com o Capitão. Minha mãe voltou a insistir pra trazerem o Mad, e eu até dei uma força. Ia ser legal se ele viesse morar com a gente, eu pensava, mas ele bateu o pé e não saía por nada. Meu pai acabou cedendo com condições que nunca me explicou, e Mad provou que sabia se virar sozinho.
“Mudamos pra nossa casa atual justamente porque meu pai e minha mãe descobriram que sob ela corria parte de um antigo sistema de metrô... um tipo de transporte subterrâneo – ele acrescentou, diante do olhar dela – Deu um trabalho do caramba deixar a coisa toda em condição de uso, e levou tempo, esforço e alguns amigos que pudessem manter segredo, mas valeu a pena. Entende, na época em que expulsaram o Capitão Maddock da Avançada, a reserva contra estranhos valia, mas não impedia alguns dos mais ambiciosos na Mesa do Conselho de mandar gente atrás do ‘louco’ pra roubar as idéias dele. Não queríamos que soubessem que o filho dele continuava com o trabalho depois do pai ter morrido, não até Mad poder apresentar um avião que voasse, como o Capitão queria”
Christabel acenou. Entendia muito bem aquilo, o propósito herdado dos pais. Nunca teria pensado que pudesse ter algo em comum com o tresloucado Maddock mas, como vinha sendo constantemente lembrada ultimamente, as aparências podiam enganar.
_ Mas você tá me enrolando, e não respondeu o que eu perguntei – Zero sorriu ao ver o ar contrafeito dela. Pensava que ele esqueceria – Anda, é algum segredo? Pode confiar em mim!
_ Sei que posso.
Ela apertou a mão dele, seu olhar terno fazendo Zero perder o fôlego por um momento; não achava que fosse possível para ela parecer ainda mais bonita. Após o breve momento em silêncio, Christabel voltou os olhos para o horizonte além do deserto que parecia cercar o Cemitério de Aviões e começou:
_ Estou surpresa, apenas. É muito bom poder me sentar ao sol dessa maneira, sem me preocupar com consipiradores querendo minha posição, ou se nossos soldados bastam para proteger a Muralha Oeste... Sem ter que me preocupar se alguém, humano ou não, virá me buscar quando acreditar que estou desatenta. Meus poderes... Minha percepção flui à minha volta, e não importa quantas vezes eu tente, não consigo encontrar hostilidade alguma. Nenhuma que ameace minha existência. É algo muito estranho para mim, mesmo que me recorde do tempo em que meus pais viviam.
Ele sorriu para ela, agora com pena.
_ E mesmo com tanta paz, você não tá tranqüila, né? Tem alguma coisa te chateando... e não tenho certeza se você sabe o que é.
Ela tornou a olhar para ele, a pergunta clara em seu rosto. Como ele sabia?
Com o mesmo sorriso triste, Zero afagou os cabelos dela, e Christabel compreendeu. Talvez não entendesse as regras da prática de magia, mas ele conseguia entendê-la tão bem quanto ela a ele. Abraçando-se a Zero, ela murmurou:
_ Na verdade, sei. Minha alma sabe que ainda não acabou... Que aqueles que me procuram não desistiram ainda, apenas não sabem onde estou por ora. Mas terei que partir, eventualmente, seja em segredo ou sob perseguição. Este lugar é magnífico, pouco importando como pareça aos olhos de outros... porque é um santuário para mim. Uma amostra da paz que nunca conheci... e que talvez nunca torne a conhecer.
Ele a apertou um pouco mais forte. Entendia melhor agora; ela queria partir, antes que o Cemitério fosse atacado, mas sabia que ao se expor novamente, seus perseguidores a manteriam sob vigilância para que nunca mais desaparecesse. E hesitava por saber que nunca mais poderia desfrutar daquela calmaria.
_ Vou estar lá com você, Minha Rainha. Pra sempre, se quiser.
Ela fechou os olhos, sentindo a inquietação passar por ora. Ao menos, dali em diante, não precisava mais ficar sozinha. Teria seu Cavaleiro com ela, em corpo e alma.


E em algum lugar afastado, uma presença sombria sorriu com satisfação. Era um sorriso aterrador, dentes brancos demais emergindo em meio ao que parecia escuridão sólida de tal maneira que poderia significar qualquer coisa, menos alegria ou felicidade.
_ Finalmente... Rainha Christabel. Espero que tenha desfrutado de seu breve descanso.

Capítulo 36

XXXVI – Trevas


A manhã seguinte encontrou a caçadora Sari sozinha, de pé sobre a casa de Maddock, olhando para o noroeste. Estavam longe da Cidade Sucata e da Avançada, o último ponto onde os perseguidores os tinham localizado, e embora ela não pudesse mais sentir a aproximação de numerosos inimigos como antes acontecera, era uma guerreira experiente demais para contar que aquela situação se estendesse.
_ Ah, visita! Bom dia, Sari!
Admirada, ela voltou seus olhos para encontrar a figura sorridente de Hermes Maddock subindo até onde ela estava, um sorriso tão cintilante quanto o sol que se ergueria atrás dele em breve. Saudando-o com um aceno da cabeça, ela respondeu:
_ Bom dia, Maddock. Desculpe se eu o assustei.
_ Imagina, é um prazer ter companhia aqui em cima – ele fez um gesto amplo, mostrando os arredores – Não é muito fácil encontrar gente que tenha disposição, sabe. Já achava que gostar de altura era só pra pilotos. Também gosta de ver o sol nascendo, ou você é a vigia da noite?
Ela hesitou um instante antes de responder. Era notável a semelhança entre o espírito dele e o de Zero, a mesma energia fulgurante que parecia brotar de um ponto mais frio em seu interior. A longa observação a Zero tornou simples para ela descobrir que Maddock também trazia uma tristeza profunda oculta em si, e outra vez ela maravilhou-se em como duas pessoas sem qualquer ligação biológica podiam ser tão semelhantes.
_ Acho que é um pouco dos dois – ela deu de ombros – Não me entenda mal, sei que seu lar é um lugar seguro... mas levando em conta quem nos acompanha, seria muito descuido se não ficássemos atentos. Cuidado nunca é demais.
_ Nah, você tem razão – ele também deu de ombros, inspirando fundo e parecendo saborear o ar fresco da manhã – Melhor prevenir antes do que deixar algo acontecer. É legal da sua parte, deixar de dormir e ficar de vigia. Principalmente sem gostar da Rainha.
Os olhos dos dois se encontraram novamente. Não havia hostilidade em Maddock, mas ele estava curioso, e Sari tornou a olhar para longe.
_ Ninguém me contou nada, se é o que você pensa; não foi preciso. Você é discreta, mas dá pra notar que fica meio inquieta quando ela e o Zero aparecem juntos. Ainda gosta dele, né?
_ Eu... Gostaria de não falar nisso, se não se importa.
_ Tudo bem; só vim ter certeza de que ele tinha sido direito e se explicado com você. Sabe, agora que o Seu Dirceu se foi, só sobrou eu pra manter o Zero na linha. Coisa de irmão mais velho.
A despeito de si mesma, Sari acabou voltando-se. Maddock estava despreocupadamente contemplando o horizonte, parecendo não ter sequer mencionado o assunto de até então, a estranha espingarda circular de canos múltiplos repousando pacata sobre seus joelhos. Depois de um instante de silêncio, ele tornou a falar:
_ Daniel me explicou um pouco daquela coisa do Torneio de que o Zero falou, onde você ganhou dele. Você tava procurando um lugar pra ficar na época, não tava? Panaca desse meu irmãozinho... Tivesse ido antes pra Melk, ou depois, não teria tirado você de lá.
_ Foi escolha minha ter vindo com ele, Maddock.
_ Pode me chamar de Hermes – ele sorriu para ela, e mesmo assim parecia triste – Ou só Mad, como o Zero faz. E o que eu quero dizer é que, na possibilidade do tonto nunca ter ido pra Melk, você teria ficado lá. Talvez não gostasse de Christabel mais do que qualquer outra pessoa, mas não teria nada contra ela e não se sentiria sozinha como agora.
Sari não respondeu, sentindo ao invés uma pontada dolorosa no coração. Evitava pensar a respeito daquilo, principalmente depois de Zero e Christabel terem se unido, e agora...
_ Por que... – ela começou, de cabeça baixa – Se compreendeu tanto, então devia saber que me causaria dor ao tocar no assunto. Por que trazer isso à tona?
_ Porque ficar sozinha remoendo só aumenta a sensação de vazio, Sari. Acredite, eu entendo disso.
Entendia, de fato, ela pensou. Seu pai morrera e ele vivia ali, sozinho e isolado de todos, salvo quando visitava ou era visitado por Zero...
_ Por isso também perguntei; no fundo, sabia que meu maninho Zero não faria uma coisa dessas de propósito – ele prosseguiu, olhando para algum ponto no horizonte ainda não iluminado – De todos os amigos que ele trouxe pra cá, você foi a única que eu não vi se divertir nem uma vez, e olha que vocês vieram com a Rainha Christabel, que tem fama de mal humorada.
Sari voltou os olhos para longe, e quando falou, parecia que sua voz era de outra pessoa, quase como se de fato não fosse ela falando:
_ Ele foi tão sincero quanto sempre, Maddock. Desde o início. Eu deveria ter me dado conta; ele participou do Torneio dedicando sua parte a ela. Foi tolice da minha parte, eu não deveria ter esperado por mais nada que sua amizade.
_ Você queria companhia – ele replicou em voz baixa, sem olhar para ela – E acho que o velho Zero foi o primeiro cara em muito tempo em quem você confiou, né?
_ Eu tive medo a princípio – ela sorriu de olhos baixos – Não teria contado sobre minha...  natureza diferente... mas o ataque a Melk me deixou ferida e não fui capaz de me esconder. Os outros reagiram como seria de esperar, mas ele ofereceu a força da própria vida para me recuperar como se não fosse nada de mais. E ao fazê-lo, inspirou Melissa e Daniel a fazerem o mesmo, e os três me salvaram. Isso os deixou isolados de todas as pessoas na fortaleza até o dia em que tivemos que fugir de lá, especialmente por continuarem próximos a mim, sabendo quem eu era... e ele não parecia se importar.
_ Não se importava não – Maddock sorriu, sempre olhando para o horizonte – Coisa de família, nunca ligar pro que outros pensam. Somos bons nisso.
_ ... Ele exerceu algum tipo de cura nela – Maddock olhou para Sari agora, que novamente parecia entristecida – Não acredito que outra pessoa fosse capaz; a força da vida dela parecia aos meus olhos como um diamante negro cintilante, tão sombrio e pesado que poder algum neste mundo poderia iluminar. Isso não existe mais.
_ Os dois são muito parecidos – Maddock retrucou, mastigando uma haste de capim que Sari não tinha a menor idéia de onde tinha vindo – Às vezes eu me perguntava, sabe, quanto a essa história que contam dela... Comparava com a história do Zero. Ele comentou com você?
O olhar dela em sua direção foi resposta mais do que suficiente, e Maddock suspirou.
_ É, acho que não. Não é o tipo de coisa que se saia contando pros amigos, mesmo os mais próximos. Sabe, é sobre a mãe do Zero...
Maddock sabia o suficiente sobre a morte de Dona Célia e, embora considerasse tais histórias exclusividade dos envolvidos, acreditava que Sari tinha direito de saber de onde vinha a afinidade de Zero em relação à Christabel; talvez isso a ajudasse a aceitar melhor o que se dera. Ia começar a falar quando Sari ficou de pé, o corpo todo tenso de repente.
_ Sari?
_ Perigo... Alguém nos encontrou!
Maddock não pôde perguntar coisa alguma, pois a caçadora saltou da laje para o piso térreo como se não fosse uma queda capaz de quebrar ou deslocar os ossos de quem saltasse. Girando no ar para amortecer o próprio impacto, Sari pousou diante da porta principal e a atravessou de sopetão, deparando com alvos múltiplos no grande salão principal do anfitrião.
Ela não estivera presente em Garland, mas os vultos sombrios semelhantes a formas humanas feitas de fumaça fizeram-na pensar imediatamente na cilada que Zero, Daniel e Melissa tinham sofrido. Pelo menos vinte deles estavam por toda a volta, mais deles chegando pelo túnel do Velocípede, alguns na escadaria que conduzia ao andar de cima.
Os vultos sombrios atacaram de todos os lados, lâminas aparecendo em suas mãos ao reparar na presença de uma presa não dominada enquanto Sari puxava sua própria espada. Vinte adversários humanos não seriam um grande problema, mas ela percebia que não havia como vencer ali. E mesmo assim...
Um giro amplo para direita, sua espada afastando três lâminas que desceram sobre ela ao mesmo tempo enquanto sua mão esquerda, com dardos metálicos presos entre seus dedos, girava para derrubar aqueles alvos.
Um giro reverso e mais quatro lâminas abateram-se sobre ela, detidas com dificuldade por sua espada. A caçadora cedeu sob o peso por um momento para depois empurrar, abrindo a guarda dos agressores por um segundo a mais.
E sua katana desceu num rodopio, talhando mais dois adversários e ganhando espaço para bloquear dois agressores por trás de si, mas não sem que pontas de lança de névoa negra e lâminas de foices longas conseguissem ferí-la.
Sari conteve um gemido e tornou-se em névoa, saltando e subindo nas armas que a feriam antes. Os atacantes recuaram para prendê-la, mas a caçadora tornou a saltar, mais alto do que qualquer humano conseguiria. Girando seu corpo em parafuso, ela lançou todos os dardos que foi capaz em todas as direções, abatendo mais alguns dos agressores no processo.
Eles não paravam de vir, e ela percebeu que havia muitos deles no andar de cima. Demais. Melissa, Freya e Christabel já deviam ter sido dominadas, não havia outra explicação para a demora delas em aparecer.
Vultos sombrios armados com espadas longas, lanças, machados, foices e armas com correntes de aparência tão imaterial quanto eles próprios saltavam do andar de cima ou brotavam da escadaria do porão para atacá-la. Não importava o quanto fosse habilidosa, não podia derrotar inimigos que não paravam de chegar. Não sozinha.
Mais um quarteto de lanças sombrias investiu à sua esquerda enquanto ela voltava ao chão. Usando a parte chata de sua espada, Sari rebateu as pontas para baixo e rolou sobre as hastes, deixando os agressores às suas costas se empalarem enquanto ela atacava o quarteto, derrubando a todos com um talho amplo.
A katana girou em sua mão direita e ela foi imobilizada por correntes que agarraram seu pulso esquerdo e seu tornozelo direito. Precisaria de uma fração de segundo para soltar-se, mas os demais atacantes não lhe concederiam esse tempo.
E da porta de entrada vieram disparos de uma arma de fogo. Muito mais rápidos, numa seqüência ininterrupta, como Sari nunca presenciara antes. Hermes Maddock estava atirando com sua arma estranha, os canos múltiplos girando tão depressa que ela mal podia acompanhar, e sua munição parecia nunca mais terminar. E os vultos sombrios tombavam aos montes diante daquela rajada.
Aquilo era precisamente do que ela precisava. Presa apenas pelo pulso esquerdo e com seus alvos paralisados pela surpresa, Sari puxou seu captor para si e cortou para o alto, abatendo mais um inimigo antes de se unir a Maddock, que tomou posição no centro do salão, sempre disparando.
_ Você tá bem, Sari?
_ Graças a você – ela respondeu, de costas para as costas dele – Que espécie de arma é essa? Nunca vi Zero disparar assim.
_ Ele não pode – Maddock sorriu, erguendo um pouco a própria arma – Isso é uma metralhadora. Te explico melhor mais tarde. Agora, temos visita.
_ Há muitos deles, Maddock. E estamos sozinhos.
_ Tudo bem; ainda tenho muita munição.
Ela olhou para ele com o canto dos olhos e, a despeito da situação difícil, não pôde deixar de sorrir ferozmente como Maddock estava fazendo. Lembrava muito a fuga simulada da Cidade Sucata, e Sari sentiu algo do peso da alma abandoná-la. Não estaria sozinha.
Passado o momento, os vultos sombrios tornaram a investir sobre o par no meio do salão. Sari empunhou a katana com as duas mãos e moveu-se depressa, tão depressa quanto podia com seu corpo de vampira, muito mais rápido do que qualquer ser humano seria capaz, destruindo seus seis agressores no que pareceu um único movimento, enquanto às suas costas, Hermes Maddock tornava a abrir fogo com sua metralhadora giratória, varrendo o flanco direito.
Livrou a mão esquerda num movimento rápido e sacou da cintura um martelo de mecânico preso numa longa tira de couro, atirando-o contra o atacante mais à sua esquerda e puxando a arma de volta, recuando um passo. Foi impossível não ser golpeado desta vez, mas seu macacão de serviço era forrado com metal e amorteceu a maior parte dos ferimentos. Sorrindo entre dentes, ele atacou os dois oponentes mais próximos com marteladas enquanto continuava a disparar, varrendo seu perímetro.
Sari continuava lutando. A técnica da velocidade ampliada forçava a concentração e reduzia o tempo com o qual ela poderia ficar sem se alimentar, mas não lhe restava opção. Sentia que não deveria tentar sorver a energia dos vultos sombrios, da mesma forma que uma pessoa sente o cheiro de veneno numa fonte d’água. Mas estava começando a ter esperança de vencer; talvez os amigos estivessem capturados ou incapacitados de ajudar naquele momento, mas com a ajuda de Mad, ela ainda...
Uma poderosa Bala de Canhão explodiu no meio do salão, entre ela e Maddock, lançando a caçadora contra a parede numa direção e o piloto em outra. A violência do impacto fez com que seu amigo tombasse inconsciente e ela própria soube que havia de cair, também. Sua melhor opção era tornar-se em névoa e tentar recuar por enquanto...
E ela viu-se encoberta por algo semelhante a vapor escuro, e pareceu-lhe que correntes de ferro tinham sido enroladas por todo o seu corpo. Apesar de não ser  uma feiticeira, Sari compreendeu o que lhe acontecera.
_ Exatamente, minha querida – uma voz sinistra se fez ouvir de algum ponto onde sua visão não alcançava – Seus poderes são fabulosos, mas não lhe serão de qualquer valia por hoje. Lamento.
_ Essa voz...! – Sari se debateu, mesmo sabendo que não adiantaria – Foi você na Cidade Sucata! Você nos atacou durante a noite...!
_ E muito trabalho me deram; sequer pude fazer minha parte na investida de todas as raças – o outro retrucou, e ela sentiu que ele estava de pé ao lado dela – Mas talvez tenha sido melhor assim; agora, pude ter a todos só para mim. Depois de uma fuga tão esforçada...
_ Como foi que nos encontrou? – era o que ela mais queria saber, sua mente fervilhando com hipóteses, todas parecendo muito improváveis. E o outro riu baixo, um riso sinistro que parecia congelar o sangue em suas veias.
_ Encontrar? Cara criança, eu nunca os perdi! Minha pequena agente garantiu que eu soubesse o tempo todo onde estavam.
Passos se fizeram ouvir, e Sari percebeu que alguém estava descendo as escadas e vindo lentamente em sua direção. Com esforço ela voltou a própria cabeça e viu, estupefata, a maga negra Melissa caminhando até ela com a mão direita erguida e uma aura escura semelhante ao vapor que a envolvera emanando dela, enquanto o outro dizia:
_ Acredito que já se conhecem...?

Capítulo 37

XXXVII – Algo Fora do Comum


Pouco menos de meia hora depois, todos os companheiros de viagem tinham sido reunidos na sala de visitas da casa de Maddock. Melissa era a única de pé diante do grupo e mantendo a mão direita erguida, emanando a mesma névoa de vapor escuro que mantinha Sari imobilizada e, agora, se debatendo de olhos fechados como se tivesse um sonho ruim e não fosse capaz de despertar.
_ Não consigo acreditar – murmurou Freya, olhando para a maga negra – Não nos conhecemos a tanto tempo, mas eu nunca teria imaginado...
_ Parou, Tata – Zero retrucou imediatamente, olhando para Melissa e tentando soltar as mãos presas atrás de si – Melhor você nem dizer, pra não se arrepender depois.
_ Zero... – começou Freya, mas Zero agitou a cabeça enfaticamente.
_ Eu tô dizendo, não é ela! Melissa nunca ia fazer isso com a gente! E se eu tô falando, é melhor todo mundo acreditar. Tô certo, Daniel?
O jovem cavaleiro de Melk estava diante de Melissa, e por um momento se manteve olhando para a namorada sem dizer coisa alguma, mas acabou por acenar a cabeça.
_ Concordo, Zero. Não sei o que houve, mas há algo de errado com ela. Esta não é a ‘nossa’ Melissa.
Um som baixo de riso frio pareceu vir de toda a parte, um tipo de risada que expressava muita coisa, mas não felicidade ou alegria. Os vultos sombrios abriram caminho e, da escadaria para o andar de cima, os viajantes viram surgir uma figura que parecia ser escuridão envolta em névoa escura, uma criatura que não podiam definir com suas visões, apenas. Cada um deles parecia sentir que seu pior temor estava oculto por aquela aura de vapor escuro e não queriam ver o que havia debaixo dela. Mas todos perceberam estar diante do verdadeiro inimigo por trás do ataque.
_ Está bem, eu devo reconhecer que há algum mérito nas suas assim chamadas ‘fé e confiança’. Ao menos, servem para privar-me de pequenos prazeres. Terei que ser mais direto, imagino.
A um gesto dele, uma procissão de vultos sombrios surgiu do corredor acima trazendo entre eles a Rainha Christabel, adormecida. E Maddock murmurou:
_ Vou te falar, nem depois daquela bagunça ela acordou... Sua namorada dorme, hein Zero?
_ É óbvio que a estou mantendo adormecida, seu imbecil – o mestre das sombras retrucou, parecendo sensivelmente irritado – Christabel ainda é muito poderosa para meras contenções... mas parece ter afinal baixado o bastante suas defesas para que uma amiga a mantivesse dormindo, não?
_ Aí ô fumaça, vou te fazer uma proposta – Zero debateu-se, parecendo na iminência de ficar de pé – Libera as três agora... e pode ir embora daqui andando.
_ Caso contrário...?
_ Você morre – Zero encarou o outro – Simples desse jeito.
_ Entendo – mas a voz do sombrio deixava claro seu descaso – Então, acho que seria prudente de minha parte fazer o que diz, não?
_ Faça o que fizer, apresse-se – Daniel rebateu, também encarando o líder dos invasores – Encerre seus assuntos conosco e certifique-se de nossa morte... Porque, se eu conseguir me libertar, vou me certificar da sua!
_ Ah, claro... – o vulto sombrio pareceu caminhar até Daniel e encará-lo de volta – Reconheço seu espírito. Foi você quem me interrompeu na Cidade Sucata, não? Uniu-se aos Religiosos e libertou as almas de todos. Você não se desespera...!
_ Assim como não creio que nossa Melissa se voltaria contra nós! O que fez a ela, desgraçado?
_ Melhor dizer, o que ela fez a si mesma – o riso frio se fez ouvir novamente – Entende, todo aquele que dedica sua mente e alma a estudar a magia negra e controlar sua força é, potencialmente, um veículo meu, para usar a qualquer momento que deseje. Desde meu ataque à sua pequena cidade eu fiz contato com a alma de sua companheira, e apenas tive que acessá-la quando assim desejei.
_ Foi como nos encontrou, então – murmurou Freya – Mesmo depois de termos vindo sob a terra, usando o Vagonete.
_ Eu nem sequer os perdi! Apenas precisei de tempo para me refazer, depois de minha investida infrutífera em sua cidade. O que me lembra, cavaleiro... Devo a você.
Sob a névoa sombria, todos perceberam que ele gesticulara e erguera a mão para manter Sari cativa, enquanto Melissa deixava de emanar o vapor de sua mão e voltava-se para Daniel, as pontas dos dedos brilhando na iminência de uma Bala de Canhão.
_ Seus demais companheiros, a jovem maga inclusa, podem encontrar seu fim quando eu tiver restaurado o verdadeiro ser de sua companheira vampira, sem humanidade ou morais que a impeçam de se alimentar de qualquer ser vivo ao seu alcance... mas você merece algo especial. Vejamos se sua grande confiança sobreviverá quando for morto por aquela a quem mais ama.
_ Bléu, bléu bléu – Maddock suspirou – O clássico discurso do vilão. É um clássico, mas enche o saco.
_ Pára de fazer gracinha, seu idiota! – Freya bronqueou – Não tá vendo que isso é sério?
_ Tá, Tata, eu sei... É sério, e também é a hora da gente fugir. Melhor se preparar.
_ Idiota, acha que vocês vão escapar de mim? – a sombra perguntou, voltando-se e aproximando-se de Maddock – Christabel está adormecida, a vampira vai matá-los e estão todos imobilizados! Que milagre espera que venha em seu auxílio?
Uma poderosa Bala de Canhão atingiu a sombra por trás e a lançou contra a parede e para fora da casa de Maddock, que sorriu com ar maroto.
_ É, esse tá de bom tamanho. Oi Li!
_ Todos de pé, agora! – Melissa gesticulou com a mão direita, as cordas de todos pegando fogo e rompendo-se. Ela então acenou com a mão esquerda, as duas pistolas voando para as mãos de Zero, a metralhadora para Maddock, os braços da armadura de Dragonesa para Freya e a lança dupla para Daniel, que ficou de pé e beijou Melissa.
_ Bem vinda de volta, querida.
_ Vamos conversar depois, Dan – ela pediu, vendo os vultos sombrios avançarem sobre eles – Não posso com todos sozinha.
_ E não precisará, Melissa – Laírton ergueu seu crucifixo, acenando para o lado – Almas perdidas, afogadas em autopiedade, deixem este lugar!
Um brilho intenso emanou do crucifixo através do Irmão por um momento, e as figuras humanas com armas pareceram sopradas por um vento silencioso até se desfazerem por completo, incapazes de resistir àquele comando. Mas Maddock voltou-se para a fenda na parede e ergueu sua metralhadora, chamando:
_ Atenção turma, ele tá voltando!
O mestre das sombras entrou pela fenda como se fosse um furacão de trevas, irrompendo sobre todos agora na forma de uma criatura muito maior, rosnando e estendendo suas garras na direção da inconsciente Christabel.
Laírton voltou para ele seu crucifixo cintilante, Freya sacou as duas pistolas nos pulsos de suas braçadeiras e abriu fogo simultaneamente com Maddock, de metralhadora erguida e concentração pura em seu rosto. Próximos à escadaria e diante de Sari, Melissa e Daniel se entreolharam; então, a maga agarrou a mão do cavaleiro e ele arremessou a lança dupla contra a sombra.
Com um último urro, a criatura sombria explodiu como um balão, vestígios de vapor escuro espalhando-se por toda a parte e seu corpo principal tombava no soalho, uma massa disforme de escuridão. Maddock manteve a metralhadora apontada e os demais se aproximaram devagar, parecendo esperar alguma última reação.
_ Será que isso morreu?
_ Receio que não, amigo Maddock – Laírton respondeu, acenando a cabeça e caminhando até a massa disforme com o crucifixo erguido em sua mão – Uma criatura tão antiga e poderosa não seria tão facilmente destruída; acredito que apenas o tenhamos banido uma segunda vez.
_ E havemos de baní-lo quantas vezes retornar – Daniel replicou com ar austero, recuperando a lança dupla e ainda de mãos dadas com Melissa. E a moça parecia encabulada.
_ Pessoal, me desculpem. Eu conseguia ver e ouvir tudo o que estava acontecendo, mas não conseguia impedir.
_ Falar nisso, Mel – Zero perguntou, tentando despertar Christabel – como foi que isso aconteceu? Você lembra?
_ N-não – ela baixou os olhos – Foi como se eu estivesse sonhando o tempo todo, incapaz de influenciar o que acontecia. Apenas quando escutei aquela voz fria me mandando matar Daniel, e percebi que ia mesmo fazer aquilo, que eu consegui despertar.
_ Sem dúvida, deve ter sido pelo forte sentimento que une vocês dois – Laírton declarou solenemente, deixando aos dois encabulados. Mas Freya tinha uma outra teoria.
_ Pode ter sido porque Melissa não é apenas uma feiticeira. Lembrem, ele disse ‘aqueles que dedicam mente e alma para estudar a magia’. Melissa também está estudando artefatos, escavação e mecânica; talvez essa sombra não possa dominar por completo alguém como ela.
_ Ah, vocês adoram fazer drama e complicar o que tá fácil – replicou Maddock, despertando Sari – A Melissa despertou e salvou a gente porque o sombra tinha terminado o discurso dele. Todo mundo sabe que o vilão sempre se ferra depois do discurso.
Enquanto os demais dirigiam ao anfitrião olhares exasperados, divertidos e incrédulos, Zero sorriu carinhosamente para Melissa e respondeu:
_ É um pouco do que todo mundo falou, acho. No final, se resume numa coisa só. Não importa o que escolha ser, a minha ‘irmãzinha’ sempre está lá dentro. E não tem sem-vergonha das trevas que possa com ela.
Corando violentamente, Melissa olhou para o amigo e sorriu de volta, comovida demais para dizer qualquer coisa. Sempre o mesmo Zero, que insistira com Seu Dirceu para que ela ficasse estudando com eles na Sucata, capaz de ver na moça curiosa uma pessoa confiável, pouco importando quem ela era fora dali. Mas Laírton, encaminhando-se depressa na direção da Rainha, interrompeu o momento:
_ Sugiro que nos apressemos. Christabel já deveria ter despertado a esta altura, e se não o fez, é porque nosso inimigo ainda não se retirou. Não podemos permanecer aqui.
_ Tudo bem, Laírton, temos uma saída pra isso. Mad, o que você acha?
_ Peguem as coisas de que precisam nos seus quartos, que eu vou separar comida pra viagem – Maddock comandou – Todo mundo, encontra com o Zero ali fora. Zero, pra garagem! Sari, e você? Consegue ficar de pé?
_ N-não se preocupe... comigo.
Mas Sari vacilou e quase caiu, enfraquecida pelo ataque das sombras. Sustentando a moça, Maddock replicou:
_ Melhor eu me preocupar, só um pouquinho. Anda, vem comigo...

Capítulo 38

Capítulo XXXVIII – Deus da Velocidade



A sensação de urgência crescia em cada um deles enquanto reuniam suas coisas. Havia uma ameaça implícita no ar que todos podiam sentir. Tomando o rumo da despensa Maddock deixou Sari sentada numa cadeira antes de puxar de seu refrigerador uma garrafa com um líquido estranho de cor marrom-avermelhada e estendê-la para a caçadora.
_ Desculpa pelo mau jeito, mas não vai dar tempo de preparar isso direito. Tome o máximo que puder de um gole só.
_ I-isso... o que...
_ Anda, Sari – ele insistiu, juntando mantimentos numa mochila – Bebe logo!
Em dúvida, a caçadora retirou a rolha e tomou um gole lento, afastando a garrafa da boca quase no mesmo instante.
_ Maddock, isso é...! O que é essa coisa?
_ Melhor você não saber – ele sorriu com impaciência – O cheiro e gosto forte têm a ver com pimenta, e é só o que eu vou contar. Esse caldo é esquisito, mas é uma tremenda vitamina; consigo trabalhar o dia inteiro sem almoçar se tomar uma dose de manhã. Talvez não seja bem o que você precisa, mas acho que vai quebrar o galho por enquanto. Anda logo, bebe!
A expressão dela deixava bem claro que só o faria pela urgência do momento e para ser educada, e que jogaria tudo pelo ralo se tivesse uma oportunidade. No entanto, ao conseguir recuperar-se o bastante do sabor forte do estranho caldo, Sari percebeu maravilhada que o torpor em seus pensamentos e a confusão tinham passado. E a surpresa dela se deu no instante exato em que seu anfitrião jogava sobre as costas a pesada mochila, com um sorriso ainda mais aberto no rosto.
_ Heh, eu posso até não ser um feiticeiro do passado, mas o efeito das minhas poções eu garanto! Anda gata, os outros devem estar esperando!
Ao chegar à sala principal da casa, a massa escura que fora o mestre das sombras pulsava e crescia, vapor sombrio emanando dela para todos os lados enquanto a temperatura parecia diminuir sensivelmente. Na abertura feita na parede estava Laírton, agora com seu grande cajado cruciforme na mão esquerda e com a direita estendida na direção da massa escura, murmurando palavras que ninguém conseguia escutar. E Zero gritou lá de fora:
_ Tata, Mad, Sari, venham logo! Sei lá o que tá acontecendo, mas o Laírton não vai segurar ele por muito mais tempo!
O trio irrompeu para fora da casa pela grande janela do salão para não se aproximar mais do que o necessário da criatura, que pareceu tentar alcançá-los. Laírton traçou uma última vez um sinal de cruz diante da fenda na parede antes de voltar-se para acompanhar os colegas na fuga e pedir:
_ A casa está selada por enquanto, mas o volume e a força dele estão crescendo, e não sei quanto tempo a barreira vai resistir. Francamente, não creio que possamos escapar dele...
_ Tudo bem Laírton, nós temos um plano – Zero replicou, indicando Maddock, que assumiu uma voz profunda e solene.
_ Homem de pouca fé, não confia em mim? Em minha companhia, serás mais veloz do que qualquer sombra! Contempla ‘O’ Palão!
Passaram correndo pela fuselagem sem asas de um antigo avião soviético para deparar com o veículo que o anfitrião e Zero tinham passado um tempo considerável reformando, e apesar da urgência do momento não havia como não ficarem impressionados com o resultado.
_ Nunca vi um Pala desse tamanho – murmurou Freya, voltando-se para Maddock – Colocou lataria extra?
_ Coloquei muita coisa e tirei outras dele, Bibi, mas essa não é a melhor hora pra falar a respeito.
_ Que história é essa de Bibi?
_ Ué, você não me deixa te chamar de ‘Tata’, e eu não gosto de ‘Bia’, daí...
_ E por que não ‘Freya’?
_ Você preferia?
_ Lógico!
_ Por isso!
_ Ô vocês dois, será que dá pra fazer um menos? – Zero bronqueou, dando um cascudo em Maddock – Tata, do lado esquerdo! Eu vou do direito, pra ficar com a Christie e pra garantir o fogo de lá!
_ Peraí, pivete! – Maddock bronqueou, agarrando a orelha de Zero – E eu, como fico lá na frente se precisar de ajuda? Preciso de alguém com reflexos bons pra usar os faróis, se aparecer alguma coisa na frente!
_ Posso fazer isso – Sari ofereceu-se, passando para o banco da frente sob o olhar preocupado de Zero.
_ Menina, você ainda tá enfraquecida do que aquele safado te fez, não tá? Devia descansar um pouco.
_ Tá tudo bem, Zero, ela vai ter que servir – Maddock apressou-se, tomando seu lugar e olhando para trás.
A casa de Maddock estremecia e sacudia, sem motivo aparente a princípio. Então, uma explosão no teto revelou a sombra maligna que voltou seus olhos para eles e começou a derramar-se de lá sobre eles impetuosamente. No volante do Palão, Maddock puxou a chave e fez os pneus cantarem, arrancando pelo portão.
_ Atenção senhoras e senhores, fala o comandante. Estamos de partida; coloquem seus cintos, respirem bem fundo e se tiverem algo pra atirar naquele lazarento, façam o favor de abrir fogo. A companhia agradece a consideração e a preferência...
_ Será que dá pra fazer menos gracinha e acelerar mais? – Freya ordenou, atirando sem efeito na avalanche de trevas que se derramava sobre eles – Aquela coisa tá se aproximando!
_ Seu pedido é uma ordem, minha visita. Iniciando procedimentos...
O Pala ganhou a quarta marcha e sua velocidade aumentou, mediante o desconforto de Daniel e a mão de Melissa na dele, tentando acalmá-lo. A bem da verdade, porém, todos estavam começando a ficar desconfortáveis com a velocidade do carro. Mesmo Laírton, agarrando-se ao teto e firmando-se como podia entre os solavancos, não pôde reprimir um comentário:
_ Devo reconhecer, ao menos diante de amigos, que mesmo minha fé não me isenta por completo do medo...
_ Sei que vocês não estão acostumados com esse tipo de situação – Zero mencionou, disparando para trás – mas tentem relaxar um pouco que a gente tá em boas mãos. Quando o assunto é velocidade, ninguém é melhor que o Mad.
Foi inevitável que os presentes voltassem sua atenção para o piloto, que trocou de marcha novamente e desviou para direita enquanto cantava:

Terminei com a minha mulher
Porque ela não conseguia
Me ajudar com a minha mente.

Dizem que sou insano
Porque fico carrancudo o tempo todo... *

(*Paranoid – Black Sabbath)

_ Ele é louco, Zero! – Freya exclamou.
_ Verdade – Zero confirmou, guardando a Marcadora com ar resignado – Mas também pilota pra caramba.
O mais estranho era que Zero parecia realmente relaxado, apesar da perseguição. Ele não mostrava qualquer insegurança com a velocidade que estavam alcançando, ou com o modo como Hermes estava dirigindo. Ficou evidente para a maioria que Maddock não era o único louco presente, para desamparo de Freya, e Melissa preferiu mudar de assunto.
_ Deixa isso pra lá e me responde, por que tá parando de atirar? Aquelas suas balas de Dragão de Fogo não funcionam naquele monstro?
_ Acabei de esvaziar um tambor delas, e tenho certeza que acertei, Li – Zero abriu o tambor, deixando a carga vazia cair – Acho que esse corpo do filho da mãe é grande demais pra munição convencional. Eu ia precisar de um míssil revestido com jóia pra, talvez, dar resultado.
_ Então, pouco importa que eu atire também – Freya murmurou, guardando as pistolas em sua braçadeira – Só o que podemos fazer é fugir.
_ Pelo menos por enquanto – Zero voltou a atenção para frente, examinando a distância a percorrer – Tudo agora depende do Mad, e do Palão ser ligeiro o bastante pra chegarmos primeiro na Porta de Maddock.
_ Chegar primeiro onde?
_ ‘Porta de Maddock’, Tata – Mad respondeu sem se voltar – Meu pai foi quem deu o nome pra a coisa. É um paredão de rocha onde a única passagem é um estreito bem estreito mesmo, parecido com aquele ‘Desfiladeiro das Termópilas’, onde...
_ E é nossa melhor chance, agora que as balas do meu pai não podem ajudar – Zero comentou, olhando preocupado para Christabel – E agora que a Christie não tá acordando.
_ Nosso perseguidor não se atreveria a enfrentá-la em tais condições e não pretende perdê-la agora, que não tem mais como alcançar a alma de Melissa – Laírton opinou, agarrando-se firme ao banco – Mas, se nosso veículo pode passar...
_ Eu cuido disso, Irmão – Mad continuou a acelerar, enquanto a quinta marcha era engatada e o motor a vapor parecia à beira de alcançar seu limite – Sari, vai ficar por sua conta. Preciso que você abra fogo com os faróis do Palão quando eu te der o sinal. Tudo bem?
_ Claro, Maddock... mas...
_ Você vai entender na hora – ele sorriu entre dentes, a atenção voltada para diante – E vai ser logo; olha lá, a Porta de Maddock!
Diante dos fugitivos e do perseguidor uma imensa colina crescia, ocultando o horizonte atrás de si exceto por uma passagem estreita em seu centro, para onde o Palão se dirigia com a massa de escuridão a perseguí-los. E Freya deu o alarme:
_ Precisamos ir mais depressa, Maddock! A avalanche está ganhando terreno!
_ Como é?
_ Eu tinha reparado – Maddock retrucou, parecendo incomumente sério – Vi no retrovisor. Ele tá deixando de quebrar pros lados e reduzindo o deslocamento lateral, caindo sempre na nossa direção. Com tanta massa e cobrindo menos terreno, ele ganha velocidade.
_ Mel, não pode fazer alguma coisa? – Daniel perguntou, e a namorada sacudiu a cabeça.
_ Se eu entendi direito, meu poder passa diretamente por ele, Dan! Consegui pegá-lo de surpresa antes, mas agora...
_ Agora a conversa é comigo, Melissa.
Sari particularmente ficou muito admirada ao ver o semblante de Maddock tão diferente. Ao invés do ar alheio de costume, a diversão habitual vinha com um olhar firme e brilhante, e a força de vida dele pulsava uma confiança inabalável, como apenas as pessoas que superaram seu maior desafio são capazes de fazer. E apesar da escuridão crescendo sobre eles e do carro estremecer cada vez mais, a caçadora teve certeza de que escapariam.
_ Você pode ser o bom à noite, quando a gente tá sozinho e com medo do escuro, seu xexelento... – Maddock murmurou, e Sari provavelmente era a única capaz de ouví-lo – Mas nada nem ninguém corre mais que Hermes Maddock, o filho do Capitão Maddock! Sari!
_ Ah... S-sim!
Encontrando os gatilhos que Maddock indicara, Sari fez com que os faróis do Palão, transformados em duas metralhadoras embutidas, começassem a disparar contra o estreito rochoso diante deles. E Zero agarrou o banco do piloto, murmurando tenso:
_ Hermes Maddock, é melhor você ter certeza disso... Se a gente não passar antes daquelas pedras caírem, eu vou ficar muito puto com você...
_ Cala a sua boca, pirralho, que aqui mando eu – Maddock murmurou de volta.
_ A parede está cedendo! – Daniel gritou lá atrás, enquanto as bordas do estreito começavam a ruir sob a artilharia cerrada do Palão. E Maddock, olhos fixos na passagem, parecia esperar por algo.
Bem acima de onde eles passariam, a parede começou a ceder. Uma rocha de tamanho considerável soltou-se e deslizou, precipitando-se sobre a estreita passagem e arrastando metade do paredão consigo.
Era o que Maddock aguardava. Sua mão direita soltou o volante e destravou uma válvula abaixo do painel, e um tanque de propelente instalado na traseira do Palão deu a eles um impulso súbito e duplicou sua velocidade.
E o deslocamento extra os fez passar entre o estreito pouco antes das primeiras rochas caírem sobre o caminho, e de toda a muralha natural desabar para lacrar a passagem ao som ensurdecedor de avalanche, da massa quase sólida de escuridão contra a montanha e do uivo de exaltação do piloto, que celebrou.
_ Úúúúúú-húúúúúúúúúúú!! É! Aqui não tem pra ninguém! Chupa, babaca!
_ É isso, Mad! – Zero apertou o ombro do amigo fervorosamente – Daqui pra frente, cê sempre vai dirigir desse jeito quando tiver comigo, entendeu!?
_ Aquelas pedras... Ele fez cair sobre nós...! – Daniel murmurou, olhando fixamente para trás – Deliberadamente as derrubou...
_ Mas conseguiu nos fazer passar no momento preciso – Freya acenou com a cabeça, e voltou-se para Maddock – Hermes, eu... Estou impressionada. Você é incrível!
_ Um desempenho admirável, sem dúvida – Laírton acenou, sorrindo – Aceite meus cumprimentos, amigo Maddock; você faz por merecer o nome de um antigo deus da velocidade.
_ É, tá certo, você é bom mesmo, Mad – Zero olhou adiante, contemplando o horizonte que se descortinava diante deles – Mas acho que dá pra reduzir, agora; pode tirar um pouco o pé, vai.
_ Vai dar não.
_ Por que? – perguntou Daniel – Ele deixou de nos perseguir, ao menos por enquanto.
_ Porque eu ainda precisava ter dado uma apertadinha nos freios.
Silêncio sepulcral caiu sobre os passageiros do Palão, e Zero, o primeiro a se recobrar, perguntou:
_ Vem cá, mas... a gente já tinha arrumado isso antes, né não?
_ Bom, é... mas eu tive que fazer um outro ajuste na pressão do óleo depois – ele comentou em tom de desculpas, enquanto todos os outros olhavam para ele em pânico – Ficou meio tarde, eu tava com sono, pensei ‘tudo bem, eu prendo mais ou menos aqui e continuo amanhã’, digo... Como é que eu ia saber que esse idiota ia atacar a gente?
_ Sua besta! E por que não nos avisou antes?!
_ E vocês iam subir no Palão se eu dissesse que tava sem freio? Qualé Tata.
Apesar da reação compreensível da maioria dos presentes, Sari, Laírton e Zero não puderam deixar de rir, e o último perguntou:
_ Mad, só pra eu saber... Como é que você tava pensando em fazer a gente parar depois?
_ Parar? Ah, sei lá – Maddock voltou-se, rindo também para o amigo – Eu tava preocupado em correr, não em parar. Pensava nisso depois, acho.
_ Acho que agora, não temos outra escolha – Melissa sussurrou, verificando a firmeza do próprio cinto de segurança, e Daniel olhou assustado através das janelas e em meio à velocidade espantosa com o qual percorriam a planície. Percebendo que os passageiros continuavam a parecer preocupados, Maddock deu de ombros.
_ Ah gente, vocês se preocupam demais! Sentem aí e relaxem! Só preciso parar de acelerar e deixar, que o Palão perde o embalo uma hora...
_ Por que tanta confusão?
Todas as atenções se voltaram para Christabel, finalmente desperta, que olhava ao redor parecendo mais aborrecida do que desnorteada por não despertar em sua cama. E Zero sorriu para ela.
_ Bom dia, Christie! Você tá legal?
_ Olá Zero – ela espreguiçou-se discretamente – O que foi que perdi?
_ Ah, uma perseguiçãozinha à toa, e o Mad derrubando uma parede em nós, nada tão sério – e apontou para fora – Mas acordou bem a tempo de ver o Palão bater todos os recordes em velocidade das últimas décadas, dá só uma olhada.
_ Verdade, Alteza, vocês são gente de sorte – Maddock cumprimentou ao volante – Com as reformas que o Mano Zero e eu fizemos, essa gracinha aproveita melhor a aerodinâmica que qualquer outro Pala, e com impulso extra dá pra ultrapassar a barreira dos trezentos quilômetros por hora...
_ Quer agora fazer a gentileza de dizer à Rainha sobre aquele detalhezinho, ‘deus da velocidade’? – Freya interrompeu exasperada – Aquela partezinha ‘sem importância’ sobre não termos como parar!?!?
Christabel olhou sem expressão para a Dragonesa e depois para Zero, que pareceu um pouco envergonhado.
_ Bom... Isso é verdade, Christie. O doido do Mad tinha deixado pra acertar os freios hoje de manhã, e como a gente teve que sair correndo por causa daquele fulano das trevas...
_ Entendo – Christabel suspirou – Acho que não podia ser evitado, então. Espero que saiba o que está fazendo, Mestre Maddock.
_ Ah, tudo bem Alteza – ele piscou pelo retrovisor – Deve dar pra parar até chegarmos ao nosso destino, eu acho. Na hora a gente vê.
_ Mas será que todo mundo aqui ficou louco? – Freya exclamou, e Maddock acenou para ela no retrovisor.
_ Nah, fica tranqüila, Bibi. Todo mundo aqui dentro é tão são quanto eu.
Enquanto Freya falhava em encontrar qualquer motivo para consolo na última afirmação de seu insano anfitrião, o Palão percorreu planícies e antigas estradas em ruínas enquanto deixava seu lar cada vez mais para trás até que, depois de pouco mais de uma hora de corrida desabalada, chegaram a um vasto campo deserto, onde o único sinal de civilização visível em quilômetros era um galpão antigo que parecia ter estado ali, isolado de tudo, desde os tempos anteriores às Grandes Mudanças. A questão de como deter o Palão foi prontamente resolvida por Maddock, que deixara a inércia consumir a velocidade excessiva durante o trajeto e usara freios mecânicos secundários para reduzir e parar diante do galpão sem maiores dificuldades, apenas para ser recriminado novamente por Freya.
_ Por que não nos disse que podia fazer isso desde o começo, seu mala? Quase nos matou de susto!
_ Ah, eu disse pra vocês relaxarem, não disse? – Maddock deu de ombros, deixando seu lugar e fechando o Palão atrás de si – Se eu dissesse que podia parar quando quisesse vocês iam ficar choramingando, dizendo pra eu reduzir, e eu queria que vocês se acostumassem a ir um pouco mais rápido do que de costume. Agora, pelo menos, não vão estranhar tanto.
_ Estranhar? – Freya perguntou, e Maddock piscou para ela enquanto destrancava um cadeado antigo e maciço na porta do galpão.
_ Pois é, Bibi. Estranhar. Afinal de contas, por mais ligeiro que seja O Palão...
E Maddock puxou a porta corrediça em sua direção, permitindo que a luz do dia penetrasse no espaço confinado, iluminando o nariz, as janelas frontais e a asa direita do que parecia ser mais um dos fósseis que Hermes possuía no Cemitério de Aviões... mas havia algo diferente nele, Freya percebeu. Talvez fosse um truque da luz, mas...
_ ... ele ainda não é a coisa mais rápida que eu tenho. Zero, se importa?
Animadamente o mecânico puxou a porta do seu próprio lado e sorriu ao ver os amigos olharem admirados para dentro do galpão onde Maddock, e o pai dele antes dele, escondia um antigo Lockheed Lodestar, um bimotor de porte médio para passageiros com lemes de direção duplos na cauda, tido por muitos conhecedores do assunto como um dos aviões mais seguros de todos os tempos, feito para durar e para transportar em segurança. Mais satisfatório do que olhar para a máquina bem conservada era olhar para o proprietário sorridente, feliz ao contemplar a incredulidade e admiração dos companheiros.
_ Levou um tempo, eu admito, recuperar a fuselagem depois da queda que matou meu pai... mas afinal de contas, eu não tinha muita coisa pra fazer no tempo livre, né?
_ C-como... – Freya retirou sua máscara e olhou embevecida para a máquina voadora diante dela, a materialização impossível de um antigo sonho, a mão estendida na direção do metal – Como conseguiu as peças... e, sozinho...?
_ Ah, você sabe como essas coisas funcionam – Maddock sorriu gentilmente para ela – Você cata uma coisinha aqui, outra ali... Anda, pode tocar! É de verdade.
_ E-eu... Eu não sei – ela voltou-se assustada para ele – Eu nem deveria ver isso! Maddock, se o Conselho da Avançada descobrisse...!
_ Beatriz, vem cá um pouquinho.
Ela silenciou, tão surpresa que permitiu que ele a conduzisse pela mão e pelos ombros com gentileza até poder esticar a mão e tocar a fuselagem. Sorrindo carinhosamente para ela, ele sussurrou:
_ Você também é uma restauradora. Eu não acredito que fosse fazer nada com intenção de estragar o trabalho de um colega. Anda, vai me fazer um favor se olhar e mexer à vontade. E pode perguntar o que quiser, eu respondo.
_ ... Está dizendo que isso voa de verdade?
Christabel olhava com algum ceticismo para a máquina escondida no galpão, mas mesmo em seus olhos era possível notar certa admiração. E Zero animadamente confirmou:
_ É sério, Christie! Voa mesmo, eu lembro do pai do Mad e do meu fazendo vôos teste nessa planície! Tá, eu era uma porcariazinha de nada na época, mas isso não é o tipo de coisa que se esqueça fácil nos tempos de hoje, né?
_ ... E ainda funciona...?
Ela lembrava-se muito bem de Zero ter contado sobre as circunstâncias da morte do pai de Maddock e do ferimento na perna de Dirceu, e se restaurar a máquina voadora parecia impossível, recriá-la a partir dos destroços de um acidente beirava um milagre. Zero parecia ter compreendido a dúvida dela, porque deu de ombros e piscou.
_ Mad não ia trazer a gente aqui à toa. Tudo bem que ele é sem noção, mas não imbecil. Não sempre, pelo menos.
_ Eu ouvi isso, ô idiota! – Maddock bronqueou enquanto baixava a escotilha de acesso. A porta abriu para fora, e sua metade inferior desdobrou-se para baixo, tornando-se numa escada de três degraus pela qual podiam ir a bordo. Hermes sorriu e acenou para que Beatriz entrasse e olhasse à vontade e deteve-se na entrada, perguntando:
_ E então, vamos pra onde daqui? Meu Rasga-Nuvens tá de caldeira cheia, o consumo tá ajustado pra baixo e não existe mais regulamento nem tráfego aéreo, o que quer dizer que podemos ir pra qualquer lugar que quisermos! Mano Zero, o que você acha?
_ Bom, acho que a Christie é quem devia decidir, Mad. E, Li... por que não tá lá dentro com a Tata, dando uma olhada no bichão? É do seu interesse também.
_ Ah, bem... – ela remexeu-se inquieta, tanto ela quanto Daniel parecendo nervosos olhando de um lado para outro para a fuselagem da máquina como se preferissem que ela não existisse. Laírton, por outro lado, pareceu superar o primeiro instante de surpresa e avançou alguns passos, acenando afirmativamente com a cabeça.
_ Um avião dos tempos antigos, restaurado e funcional... A quem quer que eu conte, dirão que estive em mais um estupor alcólico... mas preciso ver isso.
_ Por favor, esperem. Mestre Maddock?
_ Alteza?
Maddock respondeu com a devida seriedade por perceber que algo estava errado. Christabel estava séria demais. Zero também percebera, voltando seus olhos com preocupação para a Rainha.
_ Christie, o que foi? Tá sentindo alguma coisa?
_ Não... É apenas que....
Ela parecia estar reunindo coragem para decidir-se. Suspirando profundamente, Christabel ergueu os olhos e dirigiu-se a Maddock.
_ Mestre Maddock, pode por favor levar a todos até as proximidades de uma grande cidade? Tria, talvez? Algum lugar onde não vejam sua aeronave.
_ Bom, claro que eu posso, com a direção certa... mas acho que vão acabar nos encontrando de novo, Majestade. Digo, esses caras que estão atrás de você. Se o fumacinha conseguiu, pelo menos, deve ser só questão de tempo até...
_ Não virão me procurar. Irei até eles antes disso.
Zero viu suas suspeitas se confirmarem então. Christabel pretendia colocar todos a salvo e se afastar, indo lutar sozinha. Contra quem quer que fosse.
_ Christie...
_ Por favor Zero – ela o silenciou de olhos baixos, e então voltou sua atenção para todos aqueles que a haviam acompanhado até ali, menos o rapaz a seu lado.
_ Estou agindo de forma diversa ao que sempre fiz. Minha vida inteira, eu sempre confrontei meus temores ao invés de fugir deles. Por isso, pretendo seguir na direção do ‘Anjo Caído’ de quem Laírton falou, o verdadeiro senhor dos Arcanos, e acabar com isso de uma vez por todas. E devo fazê-lo sozinha.
_ Minha Senhora...
Christabel estendeu a mão na direção de Daniel e o silenciou, fazendo o cavaleiro engasgar ao conceder-lhe um lindo e raro sorriso.
_ Agradeço por sua fiel e dedicada proteção, Cavaleiro de Melk. Cumpriu seu dever e manteve sua honra. Você... Todos vocês, já fizeram muito mais do que eu poderia ter esperado ou pedido de todos. Não tenho o direito de permitir que se arrisquem mais.
Todos fizeram silêncio. Era estranho ver Christabel daquela maneira, sua tristeza costumeira expressa com serenidade ao invés de descaso e superioridade. Foi a primeira vez em que Melissa realmente compreendeu o que Zero insistira em dizer desde sua chegada a Melk. Era verdade que Christabel era, possivelmente, a mais poderosa feiticeira viva em todos os tempos, mas isso não bastava para que ela não parecesse uma moça frágil e solitária.
_ Você também fala demais, Christie.
A mão de Zero pousou gentilmente sobre o ombro de Christabel e ele a puxou para si, sorrindo gentilmente para a incomodada Rainha.
_ E tá esquecendo uma coisa importante. Se uma Rainha tem obrigações para com o próprio povo, o inverso também vale. E por enquanto, nós somos o seu povo, menina.
_ Zero... Não está me entendendo, vocês não podem enfrentar o poder deles...!
_ Não, é você quem não entende! – Melissa veio adiante, olhando com algum temor para o avião e então para a Rainha – O Zero tentou fazer a mesma coisa comigo uma vez, e se teve uma coisa que eu aprendi com o Seu Dirceu foi que ninguém escolhe meus riscos por mim! E você não vai sozinha, seja lá pra onde for! Entendeu agora?
_ M-Melissa...!
A surpresa de Christabel era ainda maior do que sua irritação por ser questionada daquela forma, e talvez apenas por isso ela não tenha conseguido dizer coisa alguma até Daniel se juntar à maga negra.
_ Com o devido respeito, Minha Senhora, Melissa está coberta de razão. É a minha Rainha e tem poder sobre mim... mas minha honra e criação têm primazia. Pelas vidas de todos os meus camaradas e pela minha própria, subirei nesta máquina infernal e a seguirei para onde for, seja de volta à nossa terra natal... ou aos portões do inferno.
_ Infernal é o caramba, Daniel! – Maddock retrucou rindo – Meu Rasga-Nuvem é o melhor transporte que vocês podem querer a essa altura, isso sim. Viaja depressa, não vai ter bicho no nosso caminho... e se eu entendi direito, Rainha, você queria usar magia pra chegar onde quer ir. Pode esquecer; já vai se desgastar antes do tempo se for assim. Basta me mostrar nosso destino, e te levo lá. Além do mais, você vai precisar do meu poder de fogo.
_ Um dia, como todos os demais servos da nossa Ordem, pretendo me encontrar com Nosso Senhor, Christabel – Laírton acrescentou serenamente – E não consigo imaginar o que responderia se Ele me perguntasse por que me desviei da missão mais importante que Me concedeu. É meu trabalho garantir que meus encargos cheguem a bom termo, e poucas vezes estive tão motivado. Por favor, peço que me poupe do embaraço de ter que recusar seu pedido novamente.
_ Laírton...!
_ Acho que vai ter que me incluir nessa rebelião, Christabel – Beatriz apareceu na escotilha de acesso, parecendo incomumente alegre e empolgada – Como Hermes disse, vocês poderão chegar a qualquer lugar nesse avião, e eu não perderia essa viagem por nada! E acho que meus professores de tiro da Sucata ficariam zangados comigo se não usar direito o que aprendi. Concorda, Zero?
_ ‘Armas de Fogo não são pra matar, mas pra proteger – recitou Zero – Não puxe pra não usar, não use pra errar, e faça cada bala valer a pena’. Pelo que disse a Christie, acho que vai dar pra seguir bem a regra, Tata.
_ Vocês não estão me ouvindo...!
_ Já deveria ter se acostumado, Christabel.
Sari estava parada diante da Rainha, mortalmente séria. Acenando negativamente com a cabeça, ela continuou:
_ Este é um grupo unido. Nenhum de nós é capaz de partir, sabendo que os demais vão seguir uma trilha perigosa. Mais do que companheiros de viagem, cada nova pessoa que chega é como parte de uma grande família. E para onde um membro desta família for, os outros irão.
_ Caç... Sari...?
_ Como disse Laírton, não temos como nos separar. Não, até saber que os demais ficarão bem – Sari deu um sorriso fraco – Acredite, sei do que estou falando. Mas já deixei uma família uma vez, e não pretendo fazê-lo novamente. E agora, vejamos como é esse seu ‘avião’, Maddock...
_ Opa, chega junto, Sari! Você vai adorar, precisa ver o motor que eu bolei...!
Os demais desapareceram dentro da fuselagem do Rasga-Nuvens, e a voz animada de Maddock explicando podia ser ouvida de quando em quando. Christabel estava confusa e um tanto desarvorada com a reação dos demais, e voltou-se para Zero, que continuava sorrindo diante da situação dela. Apertando a Rainha contra si, ele murmurou:
_ Acho que você se lembra. Eu te disse que pra onde fosse, eu estaria junto. Mas não me lembro de ter dito que ia sozinho.
_ E-eu – ela baixou os olhos, parecendo vermelha – Gostaria de evitar que se arriscassem...
_ E é o que todos gostaríamos de fazer por você. Como não dá, vamos nos arriscar juntos. É o mesmo princípio de Melk, menina.
Christabel então abraçou Zero, de forma que ele não pudesse ver nada além de seus cabelos escuros enquanto estivessem juntos. Mas ele sorriu, percebendo pela voz dela como se sentia.
_ Estou... comovida. Muito comovida.